O Doador de Memórias

O mundo em preto e branco

Quando vejo nas redes sociais as pessoas todos reclamando de tudo, imagino que adorariam o mundo perfeito mostrado no filme “O Doador de Memórias” (“The Giver”, EUA, 2014). O detalhe é que todos possuíam as mesmas coisas, a ponto de nem se enxergar mais nenhuma cor, de não ter inverno ou verão, e de não se ter memórias de nada, além da vida na mesmice.

Este era o mundo de Jonas (Brenton Thwaites), um jovem de 17 anos, prestes a entrar na vida adulta, quando seria designado para alguma função, conforme acontecia com todos da sua idade.

Jonas, como seus amigos Fiona (Odeya Rush) e Asher (Cameron Monaghan), esperava ansioso a cerimônia de formatura, para saber que papel desempenharia na Comunidade a partir de então.

Tudo era decidido pelos Anciões, não só as profissões, mas também os próprios casamentos e quem receberia os bebês gerados a partir de inseminação artificial para formar as famílias.

Todos tinham que obedecer às Regras, e havia regras para tudo. Ninguém podia mentir, e cada membro da comunidade era vigiado constantemente através de um sistema de câmeras e drones.

Jonas não estranhava nada disso, pois aquele era o seu mundo desde que nascera. Contudo, na cerimônia de designação, ele foi informado que fora selecionado para uma função diferente de todas as demais, mas que tinha uma importância vital para a Comunidade: ele seria um Recebedor de Memórias.

O jovem não tinha a menor ideia do que seria esta função, e fica sob os cuidados do Doador (Jeff Bridges), um dos Anciões. Ele era o único que detinha as Memórias de tudo o que fora o mundo antes das Comunidades.

A vida de Jonas muda radicalmente, quando ele passa a perceber que o seu mundo padronizado e monocromático esconde uma realidade cruel, onde os velhos e os bebês que não se adaptam são simplesmente eliminados, ao invés de serem “mandados para Alhures”, um lugar mítico além das fronteiras da Comunidade.

Quando ele percebe que o bebê que o pai toma conta também será executado, ele decide fazer o impensável: fugir da Comunidade e trazer de volta as memórias de todos, mesmo que isto implique na destruição da vida “perfeita” que gozam.

Este filme é baseado no livro homônimo, de autoria de Lois Lowry, e publicado pela primeira vez em 1993 nos Estados Unidos. Quem leu o livro irá notar algumas diferenças importantes, como o fato de Jonas ter apenas doze anos na época da seleção das profissões.

O livro foi escrito com outro enfoque, mostrando uma sociedade enganosamente perfeita, que para funcionar bem precisava recorrer a ações pouco éticas. A mudança da idade do personagem, a criação do par romântico, e a inserção de algumas cenas de ação foram alterações necessárias para atender ao público infanto-juvenil. As mudanças não alteraram a essência da obra de Lowry, que mostra como acontece a manipulação de um grupo para se atingir objetivos nem sempre muito claros e éticos.

Talvez o leitor pense que isso pertence ao campo da ficção, ou mesmo relembre a China de Mao-Tse-Tung, onde todos vestiam a mesma túnica de cinco botões. Se pensarmos com calma, veremos que todas as instituições que impõem regras rígidas a seus membros, desejam um determinado tipo de comportamento, e que as pessoas pensem menos como indivíduos e mais como parte de um grupo. Aliás, pensar é o que essas sociedades não desejam de seus membros.

Isso acontece nas instituições militares, nos colégios fechados, mas, principalmente nas organizações religiosas, a ponto de criar até pessoas que se suicidam em atentados como homens-bomba. Quem pensou naqueles picaretas, que fundam uma igreja de fundo de quintal para extorquir dinheiro dos inocentes também está correto.

Nos últimos anos é visível a manipulação de pessoas através de ideologias de inspiração fascista, que se baseiam em conceitos errôneos, preconceitos, racismo, e outros tipos de aspectos negativos do comportamento humano. E, obviamente, a agressividade e a violência contra os “inimigos” sempre é alimentada e estimulada.  

Mas, elucubrações à parte, “O Doador de Memórias” é um filme muito bem feito, com boas atuações, principalmente de Jeff Bridges e Meryl Streep. A pop star Taylor Swift, ainda no começo de carreira, faz uma participação no filme.

A história mostrada nas telas se reproduz ao nosso redor com tanta frequência que passamos a não a perceber mais. Por isso, se o filme conseguir plantar uma sementinha de dúvida sobre a intenção de líderes messiânicos e fundamentalistas e ajudar a abrir os olhos das pessoas, já terá valido à pena o valor do ingresso.

“O Doador de Memórias” pode ser encontrado no serviço de streaming Looke.