Lincoln

As metades que não se completam

Quando foi anunciado que seria lançado um filme sobre Abraham Lincoln, o mais conhecido presidente americano, muitas pessoas imaginaram que seria um mero relato biográfico. Por si só isso já seria magnífico, face à impressionante história de vida deste homem, que comandou o país durante o episódio mais sangrento da história americana, a Guerra da Secessão.

Baseado no livro “Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln”, de Doris Kearns Goodwin, o filme “Lincoln” (EUA, 2012), dirigido por Steven Spielberg, foca nos meses finais da vida de Abraham Lincoln. A Guerra da Secessão já dava sinais de estar próxima do término, e que ele considerava ser o momento crucial para a apresentação e aprovação da 13ª Emenda, proibindo a escravidão no território americano.

Enquanto a guerra dilapidava recursos do Sul e do Norte, diferentes facções políticas, tanto republicanas quanto democratas, defendiam seus próprios interesses, o que dificultava conseguir os votos necessários para a aprovação da emenda constitucional.

Lincoln (Daniel Day-Lewis) precisava lidar com todas estas facções. Havia os que almejavam o fim rápido da guerra, enquanto outros exigiam o fim da escravidão acima de qualquer outro objetivo. Entre os democratas, que votavam contra qualquer coisa que viesse dos republicanos, é que restava a esperança de conseguir os votos que faltavam.

Para conseguir esses votos, os colaboradores daquele que era considerado o presidente mais honesto da América utilizaram a corrupção, prometendo cargos para os deputados democratas que não tinham sido reeleitos.

Enquanto administrava essas duas guerras, a de canhões e a de votos no Congresso, Lincoln ainda tinha problemas em casa, pois a mulher, Mary Todd (Sally Field) ainda sofria com a perda de um dos filhos em um acidente. Para aumentar o tormento, o filho mais velho, Robert (Joseph Gordon-Levitt), insistia em abandonar os estudos para participar da guerra, algo que os pais queriam evitar a qualquer custo.

Embora seja algo muito forte na cultura americana, a divisão Norte-Sul é algo profundamente enraizado até hoje, mas não é muito conhecida fora das fronteiras daquele país. Muita gente não associa nem mesmo a guerra à abolição da escravatura.

As diferenças entre o Norte e o Sul tem suas origens ainda na época colonial, quando o território era dominado pela Inglaterra, França e Espanha. No Sul, os primeiros ocupantes da região encontraram um clima quente e um solo fértil, ideal para o cultivo de tabaco, e posteriormente, algodão e cana-de-açúcar, com a utilização de grande quantidade de mão-de-obra, principalmente de pessoas escravizadas.

Enquanto isto, o clima frio e o solo rochoso dos Estados do Norte mostraram-se pouco adequados à prática da agricultura. Isto forçou os colonos daquela região a procurarem outras fontes de renda como o comércio e a manufatura, favorecendo assim a criação de grandes cidades comerciais e industriais como Boston, Filadélfia e Nova York.

Ao longo das primeiras décadas do século dezenove, a imigração europeia em massa e intensa industrialização fizeram com que o poderio do Norte crescesse economicamente e ampliasse politicamente sua participação no governo. Grandes tensões políticas e sociais desenvolveram-se entre o Norte e o Sul. Em 1860, Abraham Lincoln, um republicano que baseou sua campanha na luta contra a escravidão, venceu as eleições presidenciais americanas.

Em 4 de março, antes que Lincoln assumisse o posto de presidente, 11 Estados escravagistas declararam secessão da União, e criaram um novo país, os Estados Confederados da América. A guerra começou quando forças confederadas atacaram o Fort Sumter, um posto militar americano na Carolina do Sul, em 12 de abril de 1861, e terminaria somente em 28 de junho de 1865, com a rendição das últimas tropas remanescentes da Confederação.

Não se sabe o número exato de soldados que lutaram na Guerra Civil Americana. O exército da União tinha pouco mais de 13.000 homens em atividade quando a guerra iniciou em 12 de abril de 1861, chegando a cerca de 1,12 milhão de soldados no final da guerra. O exército da Confederação atingiu seu máximo em 1863, quando o número de soldados chegou a quase 500 mil, mas foi diminuindo gradativamente, e no final, tinha menos de 200 mil homens.

Oficialmente, um total de 558.052 soldados morreram durante a Guerra Civil Americana. Considerando os soldados desaparecidos, o total sobe para aproximadamente 620 mil. O número de feridos chegou a 275 mil na União e 137 mil na Confederação. Estes números fazem da Guerra Civil Americana a mais sangrenta de toda a história dos Estados Unidos. Três quintos de todas as mortes foram causados por doenças, um quinto por lesões e ferimentos, enquanto apenas um quinto morreu diretamente em combate.

O que o filme “Lincoln” insiste em mostrar era a obsessão do presidente com a manutenção do país unificado, tratando os estados do sul como estados americanos dominados por forças rebeldes. Ele determinou a Grant, seu comandante-em-chefe, que aceitasse a rendição sem revanchismos, prisões ou execuções. Na sua visão, americanos demais já haviam morrido.

O mais curioso – ou trágico – é constatar que mesmo depois de tantos anos, pouca coisa mudou na nação americana, que continua extremamente dividida e ainda sujeita aos interesses políticos nem sempre muito honestos.

Os fãs de Spielberg, acostumados com os seus filmes de aventura, certamente estranharão o clima intimista de “Lincoln”, onde a maior parte das duas horas e meia de filme são dedicadas às confabulações políticas. A cena de batalha nos primeiros minutos do filme impressiona pelo realismo, embora fique distante do desembarque de “O Resgate do Soldado Ryan” (“Saving Private Ryan”, EUA, 1998).

O ótimo elenco, bem dirigido por Spielberg, é quem sustenta este drama tenso. Sally Field, que iniciou a vida artística com a Noviça Voadora, no final dos anos 60, traz toda a energia amargurada de Mary Todd, sendo um dos pontos altos do filme. Nos papéis secundários, David Strathain, Tommy Lee Jones, Hal Holbrook, e mesmo um irreconhecível James Spader completam o elenco impecável.

Mas, o destaque mesmo é Daniel Day-Lewis, a alma do filme, que criou aquele Lincoln que vive na imaginação de todos, o homem simples, determinado, compreensivo e paciente, que ajudou a mudar a face de uma nação. Não foi por menos que ganhou tanto o Oscar quanto o Globo de Ouro como Melhor Ator, além de outras premiações. O filme “Lincoln” ganhou também o Oscar de Direção de Arte além de ser indicado para e está indicado para mais dez categorias, entre as quais, Melhor Filme e Melhor Diretor.

Este filme pode ser assistido nas plataformas de streaming Globoplay e Telecine.