16/04/2004 – “Doutor Fantástico”
Como eu aprendi a deixar de me preocupar e amar a Bomba
Não há limites para a sede de poder do homem, e, em nome da paz, nascem mais e mais guerras. Como é mais fácil iniciar uma do que termina-la, sempre fica a preocupação de como isso irá terminar. Um filme dos anos 60, que retrata magnificamente isso, é “Doutor Fantástico”, uma das obras-primas de Stanley Kubrick.
O filme é um produto da Era da Guerra Fria, feito em 1963, em plena corrida armamentista, onde se via um comunista, comedor de criancinhas, debaixo de cada cama. Homem de visão não-engajada, e, crítico feroz dos fanatismos, Kubrick conseguiu passar para as telas a paranóia existente e o risco que a humanidade corria.
“Doutor Fantástico” é baseado num livro chamado Red Alert, que imagina as duas primeiras e decisivas horas de uma guerra nuclear. Outro filme da época, “Fail Safe” ( no Brasil, “Limite de Segurança”) de Sidney Lumet, com Henry Fonda e Walther Matthaus, usou o mesmo tema. Mas, enquanto Lumet mostrou a história de uma forma dramática, Kubrick direcionou seu filme para a comédia. Ambos os filmes são geniais, não perderam a atualidade, e, para o prazer dos cinéfilos, estão disponíveis em DVD.
Ambos os filmes exploram o mesmo tema, o início de uma guerra nuclear devido a fatores imprevistos. Em “Doutor Fantástico”, um general ensandecido, que acreditava que o tratamento da água encanada era um processo de dominação comunista, ordena um ataque nuclear à Rússia. Ironicamente, o lema deste grupo aéreo é “Paz é a nossa profissão”.
Para complicar tudo, os russos tinham desenvolvido a “arma do juízo final” que seria acionada automaticamente por uma explosão nuclear, destruindo a vida na superfície da Terra durante noventa e três anos.
Todos os militares americanos são retratados impiedosamente por Kubrick: o brigadeiro Ripper ( Sterling Hayden), que ordena o ataque e enfrenta seus colegas com uma metralhadora ponto cinqüenta, no estilo que ficaria famoso em “Rambo II”, anos mais tarde; o ultra-paranóico-radical General “Buck” Turgidson ( George C. Scott, numa antecipação do seu mais famoso filme – “Patton”) que quer a todo custo aproveitar o incidente e completar a guerra; Colonel “Bat” Guano ( Keena Wynn), que após invadir o quartel e matar vários soldados, não quer danificar uma máquina de Coca-Cola, porque é propriedade privada; Major T.J. “King” Kong ( Slim Pickens) o fanático piloto do bombardeio, que é o protagonista da antológica “cavalgada” na bomba nuclear.
O elenco todo está inspiradíssimo, a começar por Peter Sellers, que protagoniza três personagens diferentes: o inglês capitão Mandrake, único militar com algum bom senso no filme, o presidente dos Estados Unidos, e, o papel-título do misterioso Dr. Strangelove. Este último, quando aparece na parte final do filme, é uma acusação direta de fascismo aos militaristas de plantão, chamando o presidente de Mein Fueher, e, fazendo a saudação nazista, por exemplo. Curiosamente, Sellers, que estrelou muitas comédias, entre as quais, “Pantera Cor de Rosa”, faz os papéis mais contidos do filme.
De todos os principais atores do filme, o único que ainda está vivo é James Earl Jones, que ficou mais conhecido como o chefe da CIA nos filmes “Caçada ao Outubro Vermelho”, “Jogos Patrióticos”, e, “Perigo Real e Imediato”.
A edição em DVD está semelhante à que saiu nos Estados Unidos. O formato de tela é Full Screen, mas corresponde ao 16mm do cinema, de forma que não há perda de imagem ( aliás, diz a lenda que Kubrick preferia esse formato). O som é 2.0 mono original e o filme é preto e branco. Tudo isso que parece desvantajoso em relação aos filmes atuais faz parte de um conjunto harmônico da obra de Kubrick. É como se estivéssemos assistindo a obra original, sem os risquinhos na tela. A imagem, aliás, está primorosa. Os efeitos especiais são pobres, mas convincentes, para a época. Falando em efeitos especiais, Kubrick encantaria o mundo, alguns anos depois, com “2001, uma Odisséia no Espaço”.
O DVD traz os mesmos extras da edição americana, incluindo um documentário sobre a vida e obra de Kubrick e um Making Of de Doutor Fantástico. Lamentavelmente, não existem legendas, o que inviabiliza para muitos a chance de conhecer mais sobre uma das maiores expressões do cinema mundial.
“Doutor Fantástico” é um filme que vale à pena ser assistido, e, discutido, com os amigos, filhos, vizinhos, cachorro e papagaio. É importante observar que, os que tem o poder de apertar botões ( não só os das bombas), muitas vezes tomam as decisões pelas motivações mais pessoais e absurdas, sem se preocupar com as conseqüências para milhões de cidadãos. E, para tornar o programa mais interessante, que tal uma sessão tripla com “Limite de segurança” e “A Soma de Todos os Medos”?