Uma História de Amor e Fúria
Vivendo no Escuro
O mercado de cinema vive tão dependente de Hollywood e outros atores que algumas produções brasileiras passam quase despercebidas no circuito comercial. Essa situação muitas vezes é absolutamente injusta, como no caso de “Uma História de Amor e Fúria” (BRA, 2013), que não apenas é bom cinema, como também quebra vários paradigmas.
Embora os estúdios americanos e japoneses despejem dezenas de animações todos os anos, o Brasil passa ao largo deste mercado, com uma produção reduzida, e normalmente voltada para o público infantil. Por isso, é notável uma animação brasileira destinada para todas as idades, e com uma proposta provocativa, pois mostra fatos de nossa história vistos de um ângulo diferente da historiografia oficial.
O filme também parece não se enquadrar especificamente em um gênero, pois tem traços de espiritismo, drama histórico e ficção científica, embora apenas uma das histórias se passe no futuro. O que temos é uma grande viagem no tempo, onde nós somos os viajantes que acompanham os personagens ao longo dos séculos.
“Uma História de Amor e Fúria” conta quatro histórias, todas vividas pelo mesmo personagem, que recebe a missão de liderar o seu povo contra os opressores. Isso acontece ao longo dos séculos, em que ele sempre fica dividido entre cumprir a missão que lhe foi confiada, ao mesmo tempo em que segue sua amada, também presa neste ciclo de encontros e desencontros.
Em 1566, nos primórdios do Brasil colonial, quando esta palavra apenas nomeava uma cobiçada árvore, o índio tupinambá Abeguar (voz de Selton Mello) tentava passar pela prova que marcava a passagem para a vida adulta: matar uma onça sozinho. Sua amada Janaína (Camila Pitanga) faz uma brincadeira que atrai uma onça real. Ao fugir, uma coisa estranha acontece, e Abeguar, com Janaina nas suas costas, consegue voar como um pássaro até pousar em segurança.
Intrigado, ele procura o pajé da tribo, que lhe explica que ele foi escolhido pelo deus Munhã para liderar e proteger o seu povo contra os invasores. Mas, sua tribo aliara-se aos franceses de Villegagnon para lutar contra os portugueses. A primeira incursão é vitoriosa, mas logo os portugueses vingam-se com grande fúria. É o fim da primeira vida de Abeguar. Mas, ao invés de morrer, ele voa como um pássaro através dos séculos.
Em 1825, no interior do Maranhão, ele reencontra sua amada Janaína, e eles vivem uma vida pobre, mas tranquila. Ele agora é Manuel Balaio, e vive da confecção de cestos para vender na feira.
Mas, é uma época confusa, e os pobres, escravos e marginalizados sofrem com a opressão dos dominantes. Após ter sua filha violentada por um capitão da Guarda Nacional, Balaio revolta-se, e com a ajuda de escravos fugidos e outros desamparados, tomam o poder na cidade de Caxias, dando origem ao movimento que seria conhecido como Balaiada.
Um novo salto no tempo, e ele agora é Cau, um jovem estudante, que, em 1968, vê o país dominado pela ditadura militar. Ele reencontra sua amada Janaína, mas ela está namorando um jovem ativista, e por isso ele também se junta à resistência armada. Como nenhum deles teria êxito, o destino de Cau segue seu voo.
Desta vez ele chega ao ano de 2096, onde o Rio de Janeiro é uma cidade fechada, onde a elite é protegida pelas milícias (empresariais, com ações na bolsa e tudo). A cobiça da vez é pela água, dominada por uma corporação chamada Aguabras, presidida por um homem ambicioso e implacável (Sergio Moreno).
Nosso herói agora é JC, um jornalista cínico e desesperançado. Sua amada Janaína é uma garota de programa de luxo, a quem ele só tem acesso como um mísero cliente. Mas, uma ação inesperada irá mudar os destinos da cidade, e também irá colocá-los novamente em perigo mortal.
É possível que o espectador estranhe o estilo da animação, comparando-se com o preciosismo milionário dos concorrentes americanos e japoneses. Contudo, é uma obra notável, bem feita e correta, com um ritmo interessante, principalmente no capítulo final.
É curioso observar como episódios são observados do ponto de vista dos vencidos, já que a história é sempre escrita pelos vencedores. Percebe-se até algum exagero ao pintar o então coronel Luiz Alves de Lima e Silva como um opressor implacável. O futuro Duque de Caxias fez na Balaiada o que faria o resto da vida: cumprir suas missões com coragem e eficiência, mesmo que isso representasse muitas perdas de vidas de comandados e inimigos.
O filme tem um ritmo empolgante, uma ótima trilha sonora, e dubladores excepcionais, como Selton Mello, Camila Pitanga e Rodrigo Santoro. Tecnicamente não fica a dever frente aos produtos estrangeiros, e sua proposta é a mais inovadora no cinema brasileiro dos últimos anos.
“Uma História de Amor e Fúria” foi o primeiro filme brasileiro a vencer o prestigiado prêmio Cristal de Melhor Filme no Festival Internacional de Filmes de Animação de Annecy, além de inúmeras outras indicações.
Acredito que, se existe um filme que é necessário, neste exato momento histórico, é exatamente este aí. Não que traga alguma revelação prodigiosa, mas, simplesmente por ter o potencial de provocar boas discussões sobre o que foi o nosso passado. Como diz o personagem do filme, “viver sem conhecer o passado, é viver no escuro”.
“Uma História de Amor e Fúria” pode ser assistido no serviço de streaming Netflix.