1899

Matrix em alto-mar

Um dos desafios na missão de crítico é conseguir enquadrar um filme ou uma série em um determinado gênero. A verdade é que, quanto mais complexa a produção, mais elementos ela acumula dos diferentes gêneros. Este é o caso de “1899” (ALE/EUA, 2022), produção Netflix criada por Baran bo Odar e Jantje Friese, os mesmos autores da renomada série “Dark” (ALE/EUA, 2017-2020).

O ano é 1899. O Kerberos, um imponente navio a vapor transatlântico segue para da Inglaterra para os Estados Unidos. Os passageiros, de diferentes origens e classes sociais, viajam cada um com suas esperanças e sonhos para o novo século e seu futuro no Novo Mundo. Mas, sua jornada toma um rumo inesperado quando eles descobrem outro navio migrante à deriva em mar aberto.

 No segundo dia de uma viagem que duraria uma semana, o telegrafista do Kerberos recebe uma mensagem que continuamente transmite uma posição geográfica não muito distante da que estão. O capitão do navio, Eyk Larsen (Andreas Pietschmann), suspeita que a mensagem vem do Prometheus, navio da mesma companhia que havia desaparecido quatro meses antes. Mesmo com a opinião contrária de praticamente todos a bordo, ele decide modificar o curso para investigar o chamado.

Ao chegar no local indicado, encontram efetivamente o navio desaparecido. Contudo, o mesmo está deserto, a não ser por um menino e um homem que entra clandestinamente no Kerberos. O menino fica sob os cuidados de Maura Franklin (Emily Beecham), uma jovem médica envolvida no estudo do cérebro humano. Maura tem muitos motivos para estar ali: os dois navios pertencem à empresa de seu pai, e ela acha que seu irmão desapareceu porque sabia que modificações tinham sido feitas neles.

A partir daí os acontecimentos se precipitam. Larsen decide rebocar o Prometheus de volta para a Inglaterra, o que provoca a revolta de todos a bordo, desencadeando um motim liderado pelo marinheiro Franz (Isaak Dentler). O capitão é preso enquanto a maioria da tripulação se junta a imigrantes suecos conduzidos pela fanática religiosa Iben (Maria Erwolter).

Todo esse ambiente é praticamente uma torre de Babel, pois os tripulantes são alemães, e os passageiros são ingleses, franceses, espanhóis e até mesmo chineses. Poucos falam mais de uma língua e mesmo assim conseguem manter alguma comunicação, quando os interesses são comuns.

A série é composta por oito episódios onde cada um é focado em um dos personagens, que tem alguma história sombria no passado, e que se reflete no momento presente. A própria Maura parece ter sofrido algum tipo de tratamento mental. O casal francês Lucien (Jonas Bloquet) e Clémence (Mathilde Ollivier), apesar de estar em lua de mel, não conseguem se entender. Lucien tem um passado obscuro ligado ao clandestino Jérome (Yann Gael) na Legião Estrangeira.

O padre Ramiro (José Pimentão) e seu irmão Ángel (Miguel Bernardeau) também estão usando identidades falsas para fugir de um assassinato. A chinesa Ling Yi (Isabella Wei) tenta se passar por japonesa com a ajuda da mãe Yuk Je (Gabby Wong) para atender as exigências da cafetina Rosalie (Virginia Wilson).

Embora os acontecimentos iniciais tendam a um enfoque sobrenatural, aos poucos Maura e Larsen vão percebendo que algo muito estranho está por trás de tudo. Só quando encontram com o misterioso Daniel Solace (Aneurin Barnard) é que tem um vislumbre de que nada do que está acontecendo é real, embora o próprio sentido de real se torne uma incógnita indecifrável.

Embora não tenha a complexidade de “Dark”, “1899” certamente não irá agradar a todos os públicos, por não ter uma história linear e deixar muitas coisas sem explicação. Sem perigo de dar spoiler, a palavra simulação é trazida sem que os personagens tenham ideia do que seja – afinal, o ano é 1899. Contudo, não é difícil fazer um paralelo com “Matrix”.

Embora permeie pelo terror, sobrenatural, fanatismo religioso, drama, etc, o desenlace é mesmo no gênero ficção-científica, já que tudo se explica pelo uso da simulação. Curiosamente, é mais fácil aceitar coisas impossíveis com a explicação de simulação do que as magias de Harry Potter – e nem precisa da varinha do sr. Olivander.

Esta não é uma série de consumo fácil, com personagens mais densos e histórias a serem desenvolvidas. Vários fios condutores da história ficam inconclusos, o que leva a crer que logo será lançada uma segunda temporada para acompanhar a sorte dos personagens sobreviventes.

“1899” pode ser assistida no serviço de streaming Netflix.