Vesper

A natureza contra-ataca

O leitor que segue esta coluna já me viu reclamar várias vezes da repetição de temas muito explorados na ficção-científica. Distopias e mundos pós-apocalípticos, então, parece ser uma escolha frequente, mas sem grandes novidades. Por isso tudo, fui agradavelmente surpreendido com o filme “Vesper” (FRA/LT/BE, 2022), que trouxe um tema muito explorado, mas com uma abordagem diferente.

O mundo vive uma nova idade das trevas. Em um futuro não definido, a natureza parece ter conseguido o seu revés depois de tantas agressões por parte do homem. Uma floresta sombria e nebulosa está repleta de plantas afetadas por uma catastrófica crise ecológica, resultado de experiências genéticas fracassadas que transformaram simples vegetais em organismos simbióticos agressivos e perigosos.

Grande parte da população pereceu, enquanto alguns grupos de elite se fecharam em ambientes protegidos, chamados de Cidadelas. Aí eles produzem grãos que são vendidos por preços absurdos para as populações que tentam sobreviver no mundo externo. Mas essas sementes são programadas geneticamente para só produzirem uma colheita, mantendo essas pessoas sempre dependentes das Cidadelas. Além de não permitirem a entrada das pessoas que vivem no ambiente externo, os cientistas das Cidadelas criaram os Jugs, seres humanoides com inteligência mínima para servirem de criados.

É nesse ambiente que vive Vesper (Raffiella Chapman), uma menina de 13 anos, que vive numa cabana isolada com o pai, Darius (Richard Brake). Darius ficou paralisado após um acidente, e vive em cima de uma cama sem poder se mexer. Sua comunicação com o mundo é feita através de um drone.

Obrigada a assumir muitas responsabilidades ainda criança, Vesper administra os cuidados com o pai, a casa e também um antigo laboratório onde ela faz experiências biológicas com as plantas existentes no seu entorno. Seu maior desejo é descobrir como quebrar o código para permitir o uso contínuo das sementes da Cidadela.

Vesper tem dificuldades com Jonas (Eddie Marsan), seu vizinho que negocia tudo em que consegue pôr as mãos, inclusive o sangue de pessoas jovens, que vende para as Cidadelas, que o utilizam para finalidades sombrias. Jonas é o patriarca de uma família composta por mulheres recém saídas da puberdade e seus filhos, que ele utiliza como capangas e fornecedores de sangue. Ele também é o elo de ligação com as Cidadelas, sendo o único que possui um rádio-transmissor na região.

Essa rotina já conturbada é sacudida de vez com a queda de um pequeno transporte das Cidadelas. Vesper encontra na floresta uma jovem mulher, Camellia (Rosy McEwen), a retira de um ambiente de plantas carnívoras e a leva para casa, para cuidar de seus ferimentos. Sua esperança é que ela possa ajuda-los a serem recebidos em uma das Cidadelas. Ao procurar pelo homem que viera com Camellia, Vesper entra mais uma vez em choque com Jonas, que percebe que a menina está escondendo alguma coisa.

Nada parece ser o que aparenta. Vesper descobre coisas sobre Camellia que podem abalar toda a estrutura do já desajustado mundo em que vivem, inclusive com a quebra do monopólio das sementes das Cidadelas. Logo terão que enfrentar não só Jonas e seus filhos como também os impiedosos mercenários das Cidadelas.

  Como disse no início do texto, filmes sobre distopias e mundos pós-apocalípticos são comuns, mas “Vesper” traz algumas notáveis novidades. Uma delas é o tema da dominação biotecnológica. Embora a agricultura seja uma atividade milenar, a propriedade de sementes é uma realidade. Um caso real e recente foi mostrado no filme “Uma Voz Contra o Poder” (“Percy”, CAN, 2020), quando um humilde fazendeiro canadense foi processado pela poderosa Monsanto, que detinha a patente de sementes de canola geneticamente modificadas.

Também é ressaltado em “Vesper” o descontrole ambiental provocado pelo homem na sua busca desenfreada pelo lucro máximo e com total desprezo pelo delicado equilíbrio adquirido pela natureza ao longo de milênios.

Ao contrário da maioria dos filmes de ficção-científica que utilizam os efeitos especiais em cenas de ação, em “Vesper” eles são utilizados nos pequenos detalhes, nas plantas simbioticamente animadas, no computador biológico, sempre de uma forma delicada e primorosa. Tudo passa a sensação de não ser mais mecânico, feito de metal, mas biológico, incluindo o drone que substitui o pai da protagonista. Em resumo, uma festa para os olhos.

O elenco, embora reduzido, tem excelentes atuações, em especial a jovem Raffiella Chapman, que apesar da pouca idade já atuou em filmes como “A Teoria de Tudo” (“The Theory of Everything”, UK, 2014), “O Lar das Crianças Peculiares” (“Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children”, EUA/UK, 2016) e da série “His Dark Materials: Fronteiras do Universo” (“His Dark Materials”, UK/EUA, 2014-2022).

Outra boa surpresa é Eddie Marsan que entrega um vilão cruel e tenebroso sem ser caricato. Marsan tem um longo histórico no cinema e na televisão em papeis de coadjuvante, sendo este um dos seus primeiros destaques.

“Vesper” teve uma estreia limitada nos cinemas da Europa e dos Estados Unidos e ainda não tem previsão para o Brasil, existindo a possibilidade de ser lançado diretamente em video. O filme “Uma Voz Contra o Poder” pode ser visto no serviço de streaming Netflix.