A Invenção de Hugo Cabret

O homem que inventou o riso

 

Diferentemente das pessoas “normais”, sempre tive uma certa ojeriza pelos blockbusters e me interesso pelos títulos obscuros, que muitas vezes escondem verdadeiras joias da Sétima Arte. Contudo, fui obrigado a lembrar que nunca devemos generalizar, pois uma produção bem hollywoodiana me tocou muito, pois tinha como tema a minha grande paixão, o próprio cinema. O filme em questão é “A Invenção de Hugo Cabret” (“Hugo”, EUA/FRA/UK, 2011), do diretor Martin Scorsese.

A sinopse não informava muito e o trailer do filme parecia tratar mais de uma fantasia envolvendo um menino órfão e um autômato. Assim, foi certa surpresa descobrir que o tema principal do filme era o homem que deu ao cinema a sua função de entretenimento, tal como a conhecemos hoje.

A história do filme é mostrada através da ótica de Hugo Cabret (Asa Butterfield), um jovem órfão filho de um dedicado relojoeiro (Jude Law), morto em uma explosão em um museu. Hugo é abrigado pelo tio, Claude (Ray Winstone), que vivia permanentemente embriagado e tinha como emprego cuidar de todos os relógios de uma estação ferroviária. Hugo foi treinado pelo tio para substituí-lo em suas funções, e em suas bebedeiras, ele simplesmente sumiu do mapa.

Hugo tinha um desejo secreto, que era de colocar em funcionamento um velho e semidestruído autômato que o pai recolhera do lixo de um museu. Os dois dedicavam-se horas a fio, estudando e reconstruindo as peças necessárias, até que a morte do pai deixou o garoto sozinho.

Enquanto roubava comida para sobreviver, Hugo também furtava as peças de uma loja de truques e brinquedos mantida pelo rabugento Georges (Ben Kingsley). Numa destas vezes, Hugo é pego por Georges, que ameaça entregá-lo ao rigoroso Inspetor da Estação (Sacha Baron Cohen).

Hugo conhece Isabelle (Chloë Grace Moretz), que imagina ser a neta de Georges, mas descobre que ele e a mulher são os padrinhos da menina que a adotaram quando os pais morreram em um acidente.

Isabelle traz consigo a peça que faltava para o autômato funcionar, uma chave em formato de coração. Mas, o resultado deste retorno à vida parece ser algo mais estranho ainda, pois traz o desenho de um projétil entrando no olho de uma lua estilizada.

Ao procurarem mais informações sobre o assunto, terminam descobrindo que o misterioso padrinho de Isabelle era ninguém menos do que o famoso Georges Méliès, um entusiasta do cinema em seus primórdios, e que, aparentemente, morrera durante a Primeira Grande Guerra.

Não há menor dúvida de que foram os irmãos Louis e Auguste Lumière os inventores do cinema, em sua concepção de fotografias contínuas, exibidas em uma velocidade que passa ao espectador a ilusão de imagens em movimento. No ano de 1895 os irmãos projetaram “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière” para a Societé d’Encouragement pour l’Industrie Nationale, em março, e em 28 de dezembro, organizaram a primeira exibição de filmes para um público pagante, em Paris.

Mas, nem mesmo os Lumière acreditavam que sua invenção seria mais do que uma curiosidade passageira. Como eram homens de negócio, mesmo vendo o interesse do público, dedicaram-se mais à cobertura de fatos e lugares exóticos, numa linha que no futuro rumaria ao cinejornalismo.

Outras pessoas, porém, vindas do teatro de variedades, perceberam um potencial para o entretenimento fabuloso. Um destes foi Georges Méliès, que vinha de uma carreira bem sucedida nos palcos, chegando mesmo a possuir um teatro próprio, Théatre Robert-Houdin em Paris, que havia pertencido ao famoso Houdin, onde exibia inúmeros truques utilizando frutos de sua prodigiosa habilidade.

Quando assistiu uma das exibições dos irmãos Lumière, Georges ficou fascinado com as possibilidades que aquilo poderia trazer para o mundo do entretenimento. Ao tentar comprar uma das câmeras dos Lumière, teve a proposta rejeitada.

O cineasta ganhou um protótipo criado pelo cinematógrafo inglês Robert William Paul e ficou tão entusiasmado com o mesmo que saía filmando pelas ruas de Paris. Um dia, a câmera engalhou, voltando a funcionar pouco depois. Ao revelar o filme, o cineasta viu um carro transformar-se num ônibus, o que entusiasmou Méliès. A esta trucagem ele deu o nome de stop-action.

Georges era apaixonado pelo ilusionismo, unindo o fantástico ao macabro. Um dos seus primeiros filmes, “O Homem com a Cabeça de Borracha” (“L’homme à la tête en caoutchouc”, FRA, 1901), traz o cineasta como um cientista que decepa a própria cabeça para inflá-la como um fole. Em “Viagem à Lua” (“Le voyage dans la lune”, FRA, 1902), mostra uma espaçonave sendo enviada à Lua e “alunissando” no olho do nosso satélite, com direito a lutas com selenitas e uma gloriosa viagem de retorno.

Os filmes de Méliès tornaram-se mais e mais elaborados, com muitos efeitos especiais, sempre com transformações e desaparecimentos. Os filmes da época, que eram mudos e em preto-e-branco, ganharam cores nas produções dele, com os fotogramas pintados à mão, um por um.

Em função do seu perfeccionismo, e com a aproximação da Guerra Mundial (ainda não se imaginava que haveria uma segunda), George Méliès terminou falindo, e muitos dos seus filmes originais terminaram sendo vendidos como sucata, para a extração da prata, detalhe que é mostrado no filme.

Em 1923 ele foi declarado falido, e seu amado teatro foi demolido. Méliès praticamente desapareceu na obscuridade até o final dos anos 20, quando a sua valiosa contribuição para o cinema foi reconhecida pela França. Em 1931, recebeu a condecoração da Legião de Honra e a moradia no Château D’Orly, um retiro para artistas do cinema, do qual ele seria o primeiro ocupante e onde viveu os últimos anos de vida.

Georges Méliès morreu em 1938, depois de fazer cerca de quinhentos filmes no total – financiando, dirigindo, fotografando e estrelando quase todos eles.

Ao invés de optar por uma cinebiografia de Méliès – que certamente ficaria fantástica – Scorsese optou por uma visão lírica e fantasiosa, que trouxe ao espectador a essência da qual o cinema é formado: da imaginação.

“A Invenção de Hugo Cabret” ganhou o Oscar nas categorias de Fotografia, Mixagem de Som, Edição de Som, Efeitos Visuais e Direção de Arte, além de ser indicado para Melhor Filme, Melhor Direção, Roteiro Adaptado, Edição, Figurino e Trilha Sonora.

O elenco também está perfeito, principalmente Ben Kingsley, que já tem uma semelhança física com o verdadeiro Georges, e até Sacha Baron-Cohen, que prova ser um bom ator quando sai dos seus papéis escatológicos, como “Borat” e “Bruno”.

Embora não seja um filme infantil, a classificação indicativa livre permite que se assista com toda a família, o que é uma boa oportunidade para compreender o slogan que durante muito tempo dizia ser o Cinema a melhor diversão.

Uma diversão adicional são os trechos dos filmes reais de Méliès, e de dois outros grandes humoristas pouco conhecidos hoje, Harold Lloyd e Buster Keaton. Para as pessoas que sempre perguntam onde encontrar, está disponível na plataforma Amazon Prime Video.