O Samurai do Entardecer

 

Alma de madeira

 

Quem acompanha esta coluna já deve ter percebido minha admiração pelas culturas orientais, em especial a japonesa. Isso estende-se, obviamente, aos filmes. O curioso é que, quando eu peço um exemplo de um filme de samurai, as pessoas citam, na maioria das vezes, “O Último Samurai” (“The Last Samurai”, EUA, 2003) e uns até arriscam “Os Sete Samurais” (“Shichinin no samurai”, JAP, 1954) de Kurosawa. Esses são os mais conhecedores, pois alguns sugerem filmes de Jet Li e até de Jackie Chan. Mas, um bom exemplar é “O Samurai do Entardecer” (“Tasogare Seibei”, JAP, 2002), embora fuja totalmente dos estereótipos do gênero.

Embora muito utilizada no cinema e até em jogos, a figura icônica do samurai é pouco compreendida, principalmente pela ótica ocidental. Samurai, que significa “aquele que serve” era um servidor civil que tinha funções como coletar impostos ou administrar terras para um senhor feudal, o daimyô. Na época feudal ganhou atribuições militares e era o principal soldado da aristocracia imperial. Essa figura permaneceu até as últimas décadas do século 19, quando o Japão passou por uma grande e atropelada modernização.

Em pleno Japão feudal, Seibei Iguchi (Hiroyuki Sanada, que depois faria o cara que vivia dando porrada em Tom Cruise, em “O Último Samurai”) lembra muito pouco a figura do samurai heroico e elegante. Viúvo, desarrumado e sujo, exerce um cargo burocrático no castelo do seu daimyô, sendo o responsável pelo estoque de comida.

Seibei, ao contrário da maioria dos colegas, é extremamente pobre. Uma prolongada doença de sua mulher e o funeral levaram-no a assumir pesadas dívidas, e para honrá-las, cometeu o ato mais desonroso para um samurai: vendeu a sua espada longa, a katana, considerada a “alma do samurai”.

Homem dedicado à família, Seibei luta para manter as filhas estudando, salientando a importância de saber ler e entender Confúcio, enquanto cuida da mãe, que sofre de doença degenerativa, a ponto de não reconhecê-lo. Para melhorar sua renda, ele fabrica gaiolas para pássaros, atividade que também execrada, já que, na rígida sociedade japonesa feudal, só quem fazia trabalhos manuais eram os camponeses e servos.

A esperança de uma nova vida aparece quando Tomoe (Rie Miyazwa), irmã de seu melhor e único amigo, um antigo amor da infância, retorna para a família, fugindo do marido que a maltratava. Mas, a diferença social, mesmo entre famílias samurais, e o ex-marido de Tomoe são barreiras muito difíceis de serem transpostas.

Quando ele enfrenta o arrogante oponente armado apenas com um bastão de madeira, sua fama como exímio espadachim corre mundo, e ele é praticamente obrigado a enfrentar um perigoso ronim, um samurai sem senhor, que se recusa a se entregar.

“O Samurai do Entardecer”, do diretor Yôji Yamada, é um belo exemplo do cinema de um país que oscila sempre entre a alta tecnologia e a manutenção de tradições milenares. Muito diferente da maioria dos filmes marciais que inundam o mercado, repleto de lutas incessantes, este filme, com dois prosaicos confrontos, prefere explorar outros valores fundamentais da cultura japonesa, como o sentimento de honra, o amor à família e o respeito às tradições.

Embora não fique claro para a maioria dos espectadores ocidentais, a trama, assim como “O Último Samurai”, se passa em um delicado momento da história do Japão, quando a figura do samurai e a própria estrutura social do país é questionada. E o título do filme refere-se não somente ao protagonista, mas também ao entardecer de uma era que durava mil anos, mas que estava chegando ao final.

Mesmo privilegiando a parte dramática, “O Samurai do Entardecer” chamou a atenção da crítica internacional, ficando entre os finalistas de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2004, e do Festival de Berlim 2003. De aspecto negativo, apenas o ritmo, lento e suave, próprio da cinematografia japonesa, que pode desagradar o público acostumado com os filmes-pipoca.

One Reply to “O Samurai do Entardecer”

  1. Jacqueline Ribeiro

    Valeu demais por toda a nota. Despertou-me o interesse em assistir. Lembrei também de um filme, acho que japonês, onde retrata o ritual dos funerais, íntimos, e onde os mortos são preparados com o maior respeito. E um Sr, se especializa em fazer as maquiagem.
    Um abraço e gratidão por sua dedicação!

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