O filme que queria ser livro
Desde a sua invenção, há pouco mais de um século, o cinema se firmou como um catalisador das demais artes, congregando-as todas ao fazer um filme. Não é difícil compreender isso ao pensar em como um cenário utiliza pintura e escultura, a música está permeando toda a obra através da trilha sonora, e a dança e o teatro ajudam a compor a atuação do elenco.
Muito associado ao filme também está a literatura, que muitas vezes dá origem à história que vai ser contada nas telas. Para se ter uma ideia da importância desta relação, existe uma categoria do Oscar, a de Melhor Roteiro Adaptado, que premia os filmes que melhor adaptaram os livros ao cinema.
Essa associação com a literatura vem desde os primórdios do cinema, embora os rolos de filme com quinze minutos de duração limitassem muito o que poderia ser exibido. Posteriormente, a indústria foi evoluindo e a duração do filme dependia mais do que os produtores estavam dispostos a gastar com a obra.
Um aspecto que é fundamental, e que não podemos deixar de lado, é que cinema e literatura têm linguagens diferentes. Muitas vezes uma cena banal no livro toma dimensões impressionantes num filme, como é o caso da famosa cena do xadrez bruxo em que Ronnie precisa vencer para que Harry Potter chegue até a pedra filosofal.
O tamanho do livro também não precisa ter uma relação direta com a duração do filme. A monumental obra de Érico Veríssimo “O Tempo e o Vento”, que se estende por dez volumes, foi utilizada em diferentes filmes, que focaram em partes da coleção. Dele foram extraídos os filmes “O Sobrado” (1956), “Ana Terra” (1971) e “Um Certo Capitão Rodrigo” (1971), uma novela com 210 capítulos, “O Tempo e o Vento” (1967-1968) e ainda uma minissérie para a televisão de mesmo nome em 1985.
Algumas vezes acontece um “estelionato cinematográfico”, quando se anuncia que um filme é feito baseado em um livro famoso, mas o que aparece nas telas ou traz uma versão bem diferente, ou apenas uma pequena parte da obra. Os fãs do autor Philip K. Dick sempre reclamam das adaptações feitas a partir de suas obras, como “Blade Runner: O Caçador de Andróides” (“Blade Runner,EUA,1982), “O Vingador do Futuro” (“Total Recall”,EUA,1990) e “Minority Report: A Nova Lei” (“Minority Report”,EUA,2002). Além da visão diferente do autor, esses três filmes foram baseados em contos curtos.
Outros casos notáveis são “Papillon” (“Papillon”,EUA,1973), cuja história mostrada no filme corresponde a menos do terço inicial do livro. A obra de Gabriel García Márquez, “O Amor em Tempos do Cólera”, um romance com mais de quatrocentas páginas, foi condensado no filme homônimo (“Love in the Time of Cholera”,EUA, 2007) a uma pequena parte do livro.
Outros filmes seguem o caminho inverso, são feitos a partir de contos curtos e tem toda uma história bem desenvolvida. É o caso dos filmes citados acima baseados em contos de Philip K. Dick. Outros dois exemplos que gostei muito foram “A Festa de Babette” (“Babettes gæstebud”,DIN,1987), baseado num conto de doze páginas de Karen Blixen, e “A Chegada” (“Arrival”EUA,2016), a partir de um conto ainda mais curto de Ted Chiang, “Story of Your Life”. E não poderíamos esquecer “O Hobbit”, um livro simples de J.R.R.Tolkien, que foi transformado em três longas-metragens por Peter Jackson.
Esse olhar comparativo vem de longa data, pois na infância tive a sorte de crescer em uma família que adorava ler, além de ter um cinema a menos de cem metros de casa. Não é para menos que o cinema e a literatura são as artes que mais amo, e elas tem uma relação até mais profunda do que as pessoas imaginam.
Quando estava no curso de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, um professor de Literatura nos chamou a atenção para as diferenças entre um conto e um romance. O conto é pequeno, dinâmico, sintético e específico. Não existem redundâncias, e qualquer palavra em qualquer parte do texto está relacionada com o conteúdo seguinte. Já num romance, a redundância não apenas é permitida como desejada, para caracterizar profundamente os personagens.
Curiosamente, ao analisar os filmes, percebi que estes possuem as mesmas qualidades dos contos. O filme precisa ter a fluidez necessária, sem redundâncias e repetições, e qualquer cena que apareça terá uma relação com o que vem depois. Assim, um carro que tem dificuldade com a partida, ou um determinado cacoete do personagem terão importância para uma cena posterior, nada é por acaso.
Já em um seriado ou em uma novela, as regras são mais parecidas com as do romance. Como o tempo é mais longo, é possível construir o personagem com características que são repetidas para que espectador/leitor memorizem e reconheçam aquele indivíduo.
Outro dia tive uma experiência inusitada, considerando muitas décadas de cinema e literatura. Ao assistir o filme “O Filme da Minha Vida” (BRA,2017), dirigido por Selton Melo, senti um certo incômodo ao longo da exibição. Achei o filme arrastado, com cenas excessivas, e com personagens sem importância. Nos créditos finais, descobri que o filme era baseado na obra do escritor chileno Antonio Skármeta, “Un padre de película”.
Ao pesquisar mais sobre o escritor, descobri que ele foi o autor do livro “Ardiente paciência”, que deu origem ao filme “O Carteiro e o Poeta” (“Il Postino”,ITA/FRA,1994), ganhador do Oscar de Melhor Trilha Sonora além de mais quatro indicações. Outro livro de Skármeta, “Los días Del arco-íris”, inspirou o filme “No” (“No”,Chile,2012), foi um dos finalistas da categoria Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2013.
Com tantas referências boas, livros e filmes premiados, fiquei curioso para ler o livro “Um padre de película” para ver se meu incômodo com o filme tinha sentido. Quando o li o texto original, comprovei o que o meu feeling denunciara. O livro é uma obra prima de concisão e objetividade, com pouco de uma centena de páginas num estilo simples e direto, que remete mais a um conto que a um romance.
A história do livro é muito mais enxuta que a mostrada no filme, e as cenas que considerei excessivas nem existem no texto original. O personagem vivido por Selton Melo no filme não tem importância alguma no livro, e mesmo as cenas em flashback com o pai do protagonista (interpretado maravilhosamente por Vincent Cassel) foram adicionadas sem grande enriquecimento do texto.
Na verdade, se gastaram algum dinheiro com roteiro, foi um desperdício, pois o livro em si já era um roteiro pronto, nada precisaria ser retirado ou acrescentado. É uma pena ter que criticar um filme nacional, ainda mais de Selton Melo, que já viveu grandes personagens e dirigiu bons filmes e seriados.
Certamente os leitores já observaram outros casos desta relação entre cinema e literatura que varia da coerência à incoerência, do resumido ao estendido, do detalhado ao simplificado. Como toda relação, há momentos de satisfação e de frustração, mas o importante é que possamos desfrutar dela sempre. Mesmo que seja para falar mal.