Artigo: O cinema está morto! Viva o cinema!
Discutir sobre o fim do cinema remonta ao século passado, notadamente quando a televisão começou a se expandir e se tornar onipresente em muitos lares. No Brasil, porém, essa discussão só começou no início dos anos 1980, quando as transmissões da TV aberta via satélite se tornaram realidade, e as pessoas preferiam ficar em casa, refesteladas em frente ao televisor.
É bem verdade que, nesta época, nem a qualidade de imagem nem a programação das emissoras eram capazes de afrontar a excepcional fotografia do cinema, estampada numa tela enorme, mesmo nas menores cidades do país. Os atrativos eram, além do comodismo, as novelas e programas de auditório, e progressivamente, telas coloridas.
A minha cidade de infância e adolescência, Santa Rita, hoje uma extensão da capital paraibana, chegou a ter três cinemas funcionando simultaneamente, com uma sessão diária e matinês adicionais nos finais de semana. Com ingressos baratos e muita variedade de títulos, a Sétima Arte fazia valer o seu slogan, “Cinema é a melhor diversão”.
O ritmo do mundo era outro, havia a Guerra Fria, ditadura militar, censura nos meios de comunicação, e os filmes, além de demorarem a chegar, circulavam sem pressa pelo país inteiro. Assim, uma grande estreia mundial levava alguns meses para chegar a Rio e São Paulo, passando para outras capitais e cidades, maiores e menores, obedecendo a uma ordem hierárquica de tamanho e riqueza.
Os anos 1980 no Brasil foram tomados de assalto por uma diversificação nas TVs abertas, abertura política e fim da censura, e um elemento alienígena, o videocassete. A entrada no mercado de emissoras como a Manchete, por exemplo, revigorou a oferta de jornalismo e filmes, antes um privilégio global. De uma hora para outra, passados de repetidos filmes preto-e-branco da década de 1950 e 60, para filmes fresquinhos, com dois ou três anos de lançamento!
O videocassete, que nessa época só se conseguia no “importabando”, era um item precioso, mas que proporcionou aos cinéfilos a possibilidade de ver um filme com uma qualidade superior à da maioria das emissoras, e na hora que quisessem, sem sair de casa! Lembro que o nosso programa da sexta-feira era ir em família à locadora, para alugar os filmes do final de semana, com opções que iam dos infantis aos dramas, incluindo até algum filme erótico, de vez em quando.
O cinema tradicional, por sua vez, não conseguiu reagir com a dinâmica necessária. Encastelados em seu formato tradicional, recusavam-se a mudar o que fosse, recusando inovações ou adaptações a um mundo que mudava numa velocidade muito grande. Lembro-me de ter reclamado de uma caixa de som defeituosa num cinema local, e seis meses depois constatei que o problema continuava exatamente na mesma.
Enquanto isso, a oferta para o cinema doméstico melhorava a cada dia. Televisores maiores foram oferecidos com preços competitivos, e logo chegaram os videocassetes estéreos, que podiam até ser ligados num sistema de som tradicional. Para os mais exigentes, entretanto, o paraíso chegou com os home theaters, os aparelhos de DVD e as Tvs de tela plana.
A maioria das salas tradicionais de cinema fechou as portas, convertendo-se em estacionamentos, lojas ou templos evangélicos. A sobrevivência das salas aconteceu através dos sistemas multiplex, quase sempre em shoppings, mas agora mudando radicalmente o seu público consumidor. Pela localização, preços do ingresso e da lanchonete, os cinemas atuais são destinados à classe média, muito diferentes do aspecto de diversão de massa que tinham anteriormente.
Com o advento da internet em velocidade e volumes de dados cada vez maiores, novas formas de consumo foram disponibilizadas para o público. Durante algum tempo, as locadoras de vídeo forneciam a diversão doméstica, lado a lado com os DVDs piratas, mas logo chegaram novos adversários, o download de filmes e os serviços de streaming.
A descarga de filmes pela internet é comumente tratada como “download ilegal”. Tenho minhas ressalvas quanto a isso, mas o tema mereceria um artigo por si só. A verdade é que a internet tornou-se uma grande locadora nas nuvens, principalmente de filmes e séries que nunca foram lançados em vídeo ou DVD.
Já a menina dos olhos do mercado de vídeo atual é o serviço de streaming. Iniciado pela Netflix, hoje o mercado é disputado por vários concorrentes, alguns legais outros nem tanto, mas é inegável que é um caminho sem volta. As vantagens são inúmeras: ninguém precisa guardar mídia física, o catálogo é imenso, e podem ser utilizadas inúmeras plataformas, como computadores, tablets, celulares, televisores smart e qualquer aparelho que possa acessar a internet.
Curiosamente, as desvantagens estão atreladas aos mesmos aspectos. Como não existe mídia física, não tem como guardar aquele filme favorito. O catálogo é grande, mas não contempla todos os clássicos, e qualquer título pode ser retirado a bel prazer do sistema. Independente de qual plataforma se utilize, todas elas dependem totalmente da internet para funcionar.
O paciente leitor que chegou até este ponto deve estar imaginando se estou pessimista em relação ao futuro do cinema. Bem, para nivelar os conhecimentos, acredito que para ser cinema, independe o formato ou onde está sendo exibido. Exemplificando, para mim, filme Super8, fita VHS, DVD, Blu-Ray, arquivo avi ou mkv, qualquer forma de armazenar está valendo.
O mesmo é para a captação ou exibição. Foi filmado com uma câmera VHS, com um celular ou com uma câmera 3D? É um projetor 16 mm projetando um filme mudo num lençol pendurado na parede, está assistindo na tela do celular ou no cinema mais moderno do mundo? Na minha humilde visão, se tem uma história e é imagem em movimento, é cinema.
Sinto-me orgulhoso de ter testemunhado a fantástica evolução do cinema nas últimas décadas, com recursos de áudio e vídeo cada vez mais sofisticados, explorados tanto nas salas tradicionais quanto nos equipamentos domésticos, computadores e celulares. Som multicanal, resolução gráfica cada vez maior, telas LED, OLED, QLED, transmissão de dados a velocidades vertiginosas, WiFi, Bluetooth, etc… Na verdade, a convergência é a palavra de ordem.
E, se vocês pensarem direitinho sobre tudo o que falei até agora, o que testemunhamos é uma grande resiliência da Sétima Arte, uma imensa capacidade de adaptação e sobrevivência, e a certeza de que os nossos descendentes ainda vão desfrutar deste prazer nos tempos que virão. Será com uma televisão holográfica ou transmissão direto para o cérebro? Não sei, e não importa, cinema é cinema.