Filme recomendado: “Brava Gente Brasileira”

 

Cavaleiros de Tróia do Pantanal

 

Durante muito tempo tive algum preconceito em relação ao cinema nacional. Talvez por coincidir a minha juventude com a época das “pornochanchadas”, tomei certa aversão às produções tupiniquins, dando preferência ao que vinha de fora. À medida que fui amadurecendo, aprendi que nada é perfeito (nem eu, inclusive), e que é melhor experimentar, para depois criticar.

Não existe nada pior do que uma opinião do tipo “não vi e não gostei”. Existem produções brasileiras ótimas, do mesmo jeito que saem produtos de Hollywood que não valem o que o Garfield enterra – ou enterraria, se tivesse coragem. Uma experiência interessante foi assistir “Brava gente brasileira”, da diretora Lúcia Murat, sobre o qual iremos conversar.

Confesso a vocês que peguei o filme enganado. Pela semelhança do título, achei que fosse baseado no romance de João Ubaldo Ribeiro, “Viva o povo brasileiro”. Resolvido o engano, descobri que o enredo do filme é baseado em um fato histórico, ocorrido no Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai, no final do século XVIII.

Em 1778, o cartógrafo português Diogo de Castro e Albuquerque (Diogo Infante) veio a serviço do governo lusitano para fazer o levantamento topográfico da região do Forte Coimbra, situado na margem direita do médio rio Paraguai. Além de problemas com os espanhóis, que dominavam todo o resto da América do Sul, a região era habitada pelos índios Paiaguás e Guaicurus. Estes últimos tinham um notável desenvolvimento, chegando inclusive a desenvolver a habilidade de domar e usar cavalos em incursões de guerra. Eram conhecidos como os índios cavaleiros.

A expedição que conduzia Diogo era comandada pelo Capitão Pedro, um impetuoso e violento soldado, que conduzia amigos e inimigos com a mesma truculência. No caminho para o Forte Coimbra, encontraram algumas índias banhando-se num rio. Numa prática que deve ter sido comum durante séculos a fio, os soldados capturaram e estupraram as índias, matando-as ao final.

Separando uma delas, Pedro a entrega a Diogo, para que prove aos homens que não é um “sodomita”, termo pejorativo para homossexual. Perturbado pela febre e pelas privações da extenuante jornada, Diogo cede aos impulsos e violenta a jovem. Depois, atormentado pelo remorso, impede que Pedro a execute, levando-a junto com a expedição. O outro sobrevivente é um garoto branco, que teria sido raptado pelos índios.

Os dias que se seguem, já no forte, trazem a Diogo uma nova visão da vida. Longe da civilização e dos rígidos padrões morais e religiosos da Corte, Diogo inicia uma relação amorosa com a índia Ánote, com descobertas mútuas que surpreendem, deliciam e assustam o jovem português. A lembrança da noiva portuguesa, nobre, rica e virgem fica cada vez mais distante.

Enquanto os índios cavaleiros choram seus familiares mortos, Diogo e o comandante do forte tem os seus próprios problemas, enfrentando a discriminação da Igreja, que condena o relacionamento que estes mantém com mulheres indígenas. Diogo fica feliz ao descobrir que Ánote está grávida, sonhando que nasça uma pessoa com as melhores qualidades das duas civilizações.

Infelizmente para Diogo, os costumes e ódios ancestrais falam mais alto, e, o filho tão sonhado não vem. Logo em seguida, os índios usam um habilidoso ardil para invadir o forte, dizimando cinquenta e quatro ocupantes. Ainda se passariam doze longos anos antes que um acordo de paz fosse concretizado entre índios e portugueses.

O massacre ao estilo Cavalo de Tróia foi o fato real em que o roteiro foi baseado. A maior parte das filmagens foi feita no próprio Forte Coimbra, local até hoje de difícil acesso, onde a comunicação com o mundo resume-se a um solitário orelhão. O resultado final do filme reflete as dificuldades de produção, tanto logísticas como financeiras. Contudo, mesmo eventuais falhas do roteiro não tiram o brilho desta interessante produção.

De todos os personagens índios, apenas Luciana Rigueira, que vive Ánote, era uma atriz profissional. Todos os demais eram Kadiwéus, subgrupo dos Guaicurus originais. Nenhum deles tinha a menor noção de arte cênica, mas conseguiram interpretar a si próprios magnificamente.

Os Kadiwéus, que a princípio seriam só fonte de consulta, embasaram de forma decisiva o filme, seja nos hábitos, costumes e usos, como também influenciaram na forma como as cenas foram realizadas. A própria diretora reconhece que sentia que a forma que imaginara certas passagens ficava diferente quando era mostrada da forma “Kadiwéu”. Em tempo: existem algumas cenas de nudez, mas nada que não possa aparecer no Globo Repórter ou Jornal Nacional.

O elenco profissional contou com o ator português Diogo Infante para o personagem homônimo, Leonardo Villar no papel do comandante, Luciana Riguera como Ánote, e um irreconhecível Floriano Peixoto, que viveu o transexual “Sarita”, na novela “Explode coração”?, como o grosseiro Pedro. Sérgio Mamberti e Buza Ferraz fazem papéis secundários.

O enfoque mais discreto do filme é no grande embate entre as duas civilizações. É fato indiscutível que no encontro de duas civilizações diferentes, a mais poderosa sempre subjuga a mais fraca. Isso ocorreu entre os europeus e todos os indígenas, as potências mundiais e os países subdesenvolvidos e vai ocorrer com a Terra quando chegarem aqui os homenzinhos verdes de Alfa-Centauro. O que se mostra no filme, e isso sempre ocorre, é a fase em que o invasor ainda é fraco, e o autóctone ainda tem a ilusão que pode resistir e vencer.

Outro aspecto interessante é o posicionamento dos personagens como pessoas, com seus desejos, aspirações, qualidades e defeitos. Acresça-se a isso uma terra ao mesmo tempo paradisíaca e infernal, onde a sobrevivência de cada dia era uma vitória e será fácil entender o caráter brutal de todos, brancos ou índios. Talvez por isso o título em inglês tenha sido mais adequado: “Brave New Land”, que não só exalta o lado selvagem das novas terras como lembra o título original da famosíssima obra de Aldous Huxley, “Brave new world”, traduzido por aqui como “Admirável mundo novo”.

Como seria de se esperar, a edição em DVD vem com a pobreza habitual das produções nacionais. O formato de tela é Full Screen e o áudio em português 2.0 e 5.1. As legendas estão disponíveis em francês, espanhol e inglês. O curioso é que em muitas cenas quando os índios conversam entre si, simplesmente não há legenda alguma e ficamos sem entender patavina! Como Extras, notas sobre elenco e diretora, trailer de cinema, notas de produção, making of, comentários em áudio da diretora, iconografia e galeria de fotos.

“Brava gente brasileira” nem de longe é a produção mais rica ou bem feita do cinema brasileiro. Contudo, na sua simplicidade consegue passar ao espectador mais um aspecto das raízes sociais, físicas e geográficas que resultaram na riquíssima cultura brasileira. Cultura essa que vem sendo dilapidada e “invadida” no inexorável processo de globalização. Isso até chegarem os homenzinhos verdes de Alfa-Centauro. Enquanto isso, vejam o filme, para reconstituir mais um pedacinho do mosaico multifacetado de nossa história.