Coluna Claquete – 23 de março de 2017 – Especial: O Japão através do cinema
Especial: O Japão através do cinema
Há poucos dias, alguns colegas do site SetCenas e eu mantivemos uma animada discussão sobre o filme “Silêncio”, de Martin Scorsese, e se este refletiria o momento histórico do Japão sobre o qual é desenvolvida a história. Como toda discussão entre amigos, ninguém ficou convencido, todos ganharam mais conhecimento, e eu me impus um desafio: quais filmes, japoneses ou não, refletem com mais veracidade este país tão exótico e de tão difícil entendimento?
Todo mundo sabe que o Japão era o país dos samurais, e hoje é o suprassumo da tecnologia. Mas, e nesse meio termo, o que aconteceu? O que levou aquele país, que era o mais impenetrável do mundo a tornar-se a potência que é hoje? O que representou nesse contexto a derrota na Segunda Guerra e o uso de armas nucleares para isso?
Alguém poderia dizer que para conhecer o Japão dos samurais, basta assistir os filmes de Akira Kurosawa. Bem, saibam que Kurosawa era acusado pelos próprios compatriotas de ser muito “americanizado”. Talvez isso se deva ao fato de ele saber que nenhum ocidental conseguiria entender o universo japonês sem alguma ajuda.
Durante quase mil anos o Japão fechou-se totalmente em relação ao mundo exterior. Suas relações mais próximas eram com a China, um império paquidérmico, que era objeto de cobiça mas ainda muito poderoso para tentar qualquer aventura.
Assim sendo, o Japão manteve-se todo este tempo como uma sociedade altamente estratificada, onde o filho de um pescador seria pescador, o de um agricultor a mesma coisa, e o de um samurai, com certeza, um samurai.
Estes eram o esteio do poder dos senhores feudais japoneses, os daymios, que mantinham uma surda guerra entre si para disputar a supremacia em um país onde não havia exércitos regulares, e o imperador era considerado um deus, mas era praticamente um prisioneiro em seu palácio.
O samurai era um homem com educação e treinamento, cujos principais valores eram a honra e a lealdade para com o seu daymio. Um samurai sem senhor só tinha dois destinos: cometer o suicídio ritual, o seppuku, ou tornar-se um ronin, um homem sem honra.
Desta fase do Japão posso recomendar os filmes “Ran” e “Os Sete Samurais”, de Kurosawa, “Contos da Lua Vaga”, de Kenji Mizoguchi, “Harakiri”, de Masaki Kobayashi, “O Samurai do Entardecer”, de Yôji Yamada, e “Depois da Chuva”, de Takashi Koizumi.
Estes filmes mostram a rígida relação social entre classes, a disputa de poder dos nobres e a vida simples e restrita da maioria dos habitantes do país.
Um ponto importante na história japonesa aconteceu por volta do ano 1600, quando missionários e comerciantes portugueses conseguiram penetrar na rígida vida japonesa. O filme “Silêncio” passa-se nesta época, embora o enredo tenha focado apenas em dois padres que teriam sido aprisionados e forçados a renegar a fé católica. Uma visão bem mais abrangente deste período é dada pelo livro “Xogun”, escrito por James Clavell, e depois adaptado para a TV em uma minissérie, que teve uma versão compacta para o cinema. A série foi dirigida por Jerry London, e teve como atores principais Richard Chamberlain e Toshirô Mifuni. A história é baseada em um fato real, de um piloto inglês capturado pelos japoneses e que serviu ao daymio Tokugawa Ieyasu, que se tornou regente do país.
Apesar de ser ficcional, “Xogun” apresenta uma das visões mais abrangentes da sociedade japonesa, vista sob a ótica de um ocidental com rara imparcialidade. Isso se deve ao fato de o próprio Clavell ter sido combatente da Segunda Guerra e prisioneiro em um campo japonês. Apesar das dificuldades sofridas ele apaixonou-se pela cultura japonesa e produziu esta obra excepcional.
O próximo ponto de inflexão na história japonesa veio dois séculos e meio depois. O isolamento do Japão foi quebrado em 1853, quando o Comodoro Matthew Perry forçou a abertura dos portos japoneses às potências estrangeiras sob ameaça de bombardeio.
O último xogum Tokugawa renunciou ao cargo em 1868, dando início à era Meiji, em homenagem ao imperador Meiji que havia assumido o poder político. Iniciou-se então a modernização do país com a evacuação do sistema feudal e dos samurais, e com a transferência da capital para Tóquio. Um forte processo de ocidentalização teve lugar, e o Japão emergiu no mundo enquanto primeiro país asiático industrializado.
O filme que melhor apresenta este período é “O Último Samurai”, dirigido por Edward Zwick, e estrelado por Tom Cruise. Foi mais uma história ficcional que mostrou com notável fidelidade o difícil período de transição do Japão feudal para o moderno, e o grande impacto que causou não só na cultura de castas dominante durante mil anos, como também o início da sede militarista e expansionista que dominaria o país no início do século 20, e que culminaria com a participação do Japão na Segunda Guerra Mundial.
Um novo ponto de inflexão da história japonesa foi neste conflito. Filmes como “Tora, Tora, Tora!” apresentam o início da participação do Japão na guerra, com o bombardeio a Pearl Harbor, enquanto “Cartas de Iwo Jima” mostram a visão japonesa do conflito depois da derrota da Alemanha. A belíssima animação de Hayao Miyazaki, “Vidas ao Vento”, mostra de uma forma lúdica a preparação do Japão para o conflito.
Uma rara visão da guerra, através da ótica dos sofridos habitantes, vem com a animação “Túmulo dos Vaga-Lumes”. No filme, dois irmãos tentam sobreviver a uma guerra sobre a qual não tiveram nenhuma decisão, e da qual só sofrem as consequências. A animação, que já teve duas versões com atores, é baseada na história real de Akiyuki Nosaka, contada no livro “Haturo no Haka”, de 1967.
O conflito persistiu até mesmo depois de 1945, quando no Brasil, parte da colônia japonesa recusou-se a acreditar na derrota japonesa, o que provocou reações extremadas, fatos que foram investigados por Fernando Morais em seu livro “Corações Sujos”, depois transformado em filme por Vicente Amorim.
Do país alquebrado pela guerra à potência econômica e industrial dos anos 80, bastaram apenas algumas décadas. Ao contrário do que muitos defendem, isso não se deveu apenas ao dinheiro injetado pelos americanos, mas muito ao caráter inquebrantável do povo japonês. Valores como disciplina, eficiência, limpeza e ordem vem de tempos imemoriais, quando metrópoles japonesas funcionavam com perfeição enquanto cidades europeias como Londres e Paris eram caos urbanos, com dejetos e lixo jogados no meio das ruas.
Essa forma japonesa de pensar e agir nem sempre é compreendida pelos ocidentais, e a estranheza destes também desconcerta os nipônicos. Afinal, a cultura de um povo é um patrimônio indestrutível, algo que nós ainda estamos longe de assimilar.
A singular cultura japonesa pode ser vista em muitos filmes atuais, mas eu recomendaria os seguintes: “Medo e Tremor”, de Alain Corneau, “Tokyo Fiancée”, de Stefan Liberski, ambos baseados em livros da escritora belga Amélie Nothomb, “Para o Outro Lado”, de Kiyoshi Kurosawa, “Pais e Filhos”, de Hirokazu Koreeda, e o belíssimo “A Partida”, de Yôjirô Takita.
Este rápido mergulho no Japão visto pelo cinema apenas mostra a riqueza da milenar cultura japonesa, e da incapacidade que temos em nos aprofundar num universo tão distinto do nosso. Alguns sentirão falta de filmes sobre a Yakuza, Godzilla, ninjas, e até os icônicos contos de terror como “O Chamado”, bem como os lindos filmes do Studio Gihbli. A única coisa que podemos ter certeza é que esta lista nunca deixará de crescer.