Coluna Claquete – 14 de junho de 2016 – Filme da Semana: “Medo e Tremor”


Filme da Semana: “Medo e Tremor”
Culturas diferentes sempre são atraentes, embora muitas vezes seja difícil compreendê-las, principalmente quando se está vivendo em outro país. Isso ainda se torna mais complexo quando o país em questão é o Japão, que ao longo de sua história passou longos períodos isolado do resto do mundo. Este isolamento propiciou tradições e valores que são muito diferentes de outras culturas, e sempre causam espanto aos gaijin, os estrangeiros. Um filme que explora este tema de uma forma muito interessante é “Medo e Tremor” (“Stupeur et Tremblements”, 2003), dirigido pelo francês Alain Corneau.
O filme é baseado no livro de mesmo nome escrito pela belga Amélie Nothomb, que, em tese, seriam suas memórias do tempo em que morou e trabalhou no Japão. Filha de diplomata, Amélie morou no Japão quando criança, e apaixonou-se pela cultura japonesa, tornando-se fluente na língua, embora não na escrita.
A personagem Amélie (Sylvie Testud), porém, é uma intérprete, fluente em francês, inglês e japonês. Contratada por uma grande corporação japonesa, ela quer realizar seu sonho de morar e trabalhar no Japão.
O universo empresarial no Japão é bem diferente do resto do mundo. O presidente da companhia, Sr Haneda (Sokyu Fujita) é inacessível, o vice-presidente, Sr Omochi (Bison Katayama) é colérico e obeso, o chefe da contabilidade, Sr Saito (Tarô Suwa) também é agressivo e exigente, e na última escala de superiores de Amélie, sobra a linda e eficiente Fubuki (Kaori Tsuji), uma das poucas mulheres a exercer função gerencial na empresa.
Logo, Amélie irá descobrir que falar a língua ou conhecer os costumes não a habilita a transitar livremente no universo japonês. Na verdade, sua primeira grande gafe acontece quando ela serve chá para visitantes de outra companhia. Ao agir e falar como uma japonesa, ela cria uma situação desconfortável para a empresa.
Seu novo tropeço acontece quando ela prepara um relatório sobre uma empresa belga, a pedido do simpático Sr Tenshi (Yasunari Kondo). O trabalho causa um grande tumulto, pois isso é considerado uma quebra de hierarquia, já que o responsável pela área estava em viagem de negócios. Mas, para Amélie, a maior decepção foi saber que quem a denunciara fora a própria Fubuki.
Estes tropeços resultam em atribuições cada vez piores para Amélie, que chega ao fundo do poço quando recebe a tarefa de cuidar dos banheiros do escritório. Mesmo assim, ela não desiste do trabalho, pois para um japonês, pedir demissão é uma desonra inadmissível.
O filme foi muito fiel ao livro, e traz para o leitor uma rara visão da cultura japonesa sem glamour, observada por alguém que já conhece muito do país, e pode fazer uma análise comparada.
A história se passa em 1990, época em que a economia do Japão era considerada avançadíssima, com ensinamentos para o mundo todo sobre qualidade, eficiência na produção, e outros avanços, enquanto que as relações no trabalho ainda se conduziam como no tempo dos samurais. A lealdade e obediência cega eram consideradas mais importantes que a inovação, as promoções demandavam um longo tempo de serviço, e as humilhações públicas eram o castigo mais comum. Será que hoje ainda é assim? Talvez não, embora certas coisas nunca mudem.
Mas, além dos choques culturais, o filme traz a ótima performance das duas atrizes principais, embora o grande destaque seja da francesa Sylvie Testud. A atriz, que não fala japonês, decorou suas mil e cem falas graças a um método fonético, e sua atuação no filme lhe rendeu os prêmios César e Lumière de Melhor Atriz, e a Estrela de Ouro do Cinema Francês. Seu jeito inocente dá muita credibilidade à personagem, e garante o humor necessário para essa história de humilhações.
Mas, talvez o ponto mais importante do filme seja o de chamar a atenção para a sofrida mulher japonesa, que precisa abdicar de vida própria para consagrar ao trabalho, e nunca tem o reconhecimento devido da sociedade.
Recomendo a todos tanto o filme quanto o livro, que já tem uma edição em português. O título se refere à forma como um japonês deve apresentar-se perante o Imperador, com medo e tremor, perante uma figura considerada divina.
 Título original: “Stupeur et Tremblements”