30/01/2004 – “Beleza Americana”

Filme Recomendado: “Beleza Americana”

Não é nenhuma novidade uma obra de ficção que fale sobre um homem maduro apaixonado por uma garota bem mais jovem. À primeira vista, este é o tema principal de “Beleza americana”, ganhador do Oscar de melhor filme em 1999. O tema é antigo, mas ganhou nome com o livro do escritor russo Nabokov, “Lolita”, que já rendeu um filme dirigido por Kubrick em 1962 e um outro de Adrian Lyne em 1997. Fora isso, milhares e milhares de livros, filmes, novelas e minisséries já foram produzidos, baseados no tema que terminou virando sinônimo de ninfeta. E, o que tudo isso tem a ver com “Beleza americana”? A lolita deste filme serve de estopim para causar uma revolução na vida de Lester Burnham, personagem principal da história, vivido brilhantemente por Kevin Spacey.

Lester não é diferente de milhões de americanos, europeus, brasileiros ou qualquer ocidental de classe média que já tenha passado dos quarenta anos. Ele vive numa situação estável, com um emprego sem atrativos, morando numa confortável casa de subúrbio ( isso lá é morar bem), que é totalmente moldada pelas regras de sua mulher. Esta vive as suas próprias crises profissionais como corretora de imóveis, mas mantém-se inabalável. A filha adolescente sonha com uma cirurgia plástica nos seios e nutre um profundo desprezo pelos pais.

Como nenhuma desgraça vem desacompanhada, as coisas começam a complicar para Lester no trabalho. Um jovem e arrogante consultor espalha ameaças de demissão entre os funcionários, tudo em nome da revitalização da empresa. Carolyn, a mulher de nosso herói, mantém uma relação extraconjugal com um antigo colega de universidade, agora um empresário bem sucedido.

Em meio a esta vida confusa e decepcionante, vazia de amor e de emoções, Lester experimenta duas revelações. A primeira é quando encontra com Ricky, o filho do vizinho, trabalhando como garçom numa festa. Quando estão dividindo um cigarro de maconha ( que Ricky fornece profissionalmente), o rapaz é repreendido pelo patrão. Ricky demite-se na hora, o que deixa Lester surpreso com a tranqüilidade do rapaz. Afinal de contas, o maior medo de qualquer assalariado é a perda do emprego.

A segunda é quando assiste a uma apresentação do grupo de cheerleaders de que sua filha faz parte. A visão, da melhor amiga da filha, desperta em Lester fantasias adormecidas que o deixam atordoado. Mais tarde, ao bisbilhotar atrás da porta do quarto da filha, onde a amiga fora dormir, Lester escuta a sua jovem musa dizer que “o achava simpático, se malhasse mais, ficaria um gato”…
De uma hora para outra, Lester resolve jogar tudo para o alto. Demite-se do emprego com vantagens arrancadas no grito, começa a malhar como se fosse para as Olimpíadas, troca o carrão tradicional pelo Pontiac dos seus sonhos, arruma um trabalho como atendente de fastfood, tenta reatar as relações sentimentais com a família e aproxima-se dos vizinhos. Com o simpático casal gay que mora ao lado, não há problemas, mas com o pai de Ricky, a recepção é gélida. Ultra-conservador, o coronel Fitts odeia homossexuais e controla a vida do filho com mão-de-ferro.

Embora o coronel use as mesmas táticas “sutis” de sua vida como marine, Ricky sempre dá um jeito de enganá-lo. E para que ninguém cometa o mesmo erro de milhares de tradutores “profissionais”: marine é um fuzileiro naval, Marinha em inglês é Navy.
Este tema do chutar-o-pau-da-barraca de um homem de meia-idade já tinha sido brilhantemente explorado por Elia Kazan em “Movidos pelo ódio” ( The arrangement”), com Kirk Douglas, Deborah Kerr e a então novata Faye Dunaway. Contudo, o que “Beleza americana” coloca o dedo na ferida não é só na rebeldia tardia dos coroas. O que fica bem evidente é o lado hipócrita da sociedade ocidental que supervaloriza a imagem.
Todos tem uma imagem a zelar. A esposa perfeita que cuida das rosas do jardim ( o título vem daí, um tipo de rosa chamado “American beauty”), do protocolo das refeições em família e da escolha do amante com a mesma dedicação. É o jovem traficante e usuário de maconha, que consegue literalmente passar-se por um menino, para burlar o exame de urina a que o pai o submete. É o rígido fuzileiro, de fazer inveja a John Wayne, que sufoca seus desejos mais reprimidos. Até a maior vadia do colégio alimenta uma fama artificial.
Nessa excêntrica salada de fantoches vivos, só o casal homossexual e Lester têm coragem de expor-se como são e enfrentar o sistema de peito aberto. Pelo fato de Lester ser mais “normal”, a reação das pessoas é mais confusa e violenta do que com qualquer outro.
Além de um roteiro bem amarrado, diálogos interessantes e fotografia bem cuidada, outro ponto forte do filme é o elenco, muito bom. Além do Kevin Spacey no papel de Lester, Annete Benning e Thora Birch completam sua família. Peter Gallagher é o amante, Mena Suvari a ninfeta que atormenta Lester, Wes Bentley faz Ricky e Chris Cooper o reacionário Coronel Fitts.
A edição em DVD está próxima do que deveria ser o padrão normal: formato de tela widescreen anamórfico, áudio em inglês, espanhol e português Dolby Digital 5.1, legendas em português, espanhol, inglês e cantonês. Como extras, vinte minutos de inúteis cenas de bastidores, trilha de comentários com o diretor Sam Mendes e do roteirista Alan Ball e apresentação do storyboard comentada pelo diretor Sam Mendes e pelo diretor de fotografia Conrad L. Hall.
Este filme é um retrato bem feito da civilização ocidental com suas mazelas e hipocrisias. O final pessimista sugere que não existe fuga do sistema e todos temos que viver de acordo com nossos papéis nesse palco que é a vida. Contudo, se o filme ao menos servir para nos lembrar da existência desse mundo de fachadas de papel, já terá valido o preço da locação. Experimentem, coroas e gatinhas de todas as idades.