Guerra Fria na contramão

 

Nos últimos tempos, cada vez que uma pessoa mais racional faz um comentário crítico sobre um governo extremista, é imediatamente tachada de comunista. Isso na verdade é uma autoafirmação de ignorância política, para dizer o mínimo. Outra opção, talvez, é que essa pessoa entrou em coma nos anos 1970 e só despertou agora.

Para quem estudou História, ou pelo menos acompanhou os noticiários das últimas décadas sabe que após Segunda Guerra Mundial e até o final da década de 1980, o mundo vivia dividido em duas grandes áreas de influência. Uma era dominada pelos Estados Unidos, capitalista, e outra pela União Soviética, comunista, e que causa pesadelos nos desavisados até hoje.

Após a Segunda Guerra, o comunismo parecia realmente ser uma ameaça, pois além da poderosa União Soviética, a incipiente República Popular da China também se firmava. Ao longo dos anos, vários países do Leste Europeu foram sendo arrastados para a área de influência soviética, e a revolução cubana também foi vitoriosa.

Essa ameaça comunista foi combatida pelos Estados Unidos com um forte apoio às ditaduras de extrema direita, ao mesmo tempo em que uma forte propaganda exacerbava essa pretensa ameaça. Para complicar as coisas, tanto Estados Unidos quanto União Soviética desenvolviam armas nucleares cada vez mais poderosas, e faziam constantes ameaças entre si. Isso assustava o mundo, pois ninguém sairia ileso de um conflito nuclear.

É sobre esse contexto que tratam dois filmes recentes muito interessantes, “A Espiã Vermelha” (“Red Joan”, UK, 2018) e “O Espião Inglês” (“The Courier”, USA/UK, 2021). Baseados em fatos reais de épocas distintas, as duas tem alguns notáveis pontos em comum.

“A Espiã Vermelha” é inspirado na história de Melita Norwood, uma funcionária pública que repassou para a União Soviética informações secretas do programa nuclear britânico nas décadas de 1940 e 1950. O caso só foi descoberto em 1992, quando ela já estava com oitenta anos, e por conta disso o Ministério de Defesa desistiu de processá-la.

No filme, a personagem é Joan Stanley, vivida por Judi Dench e Sophie Cookson nas diferentes épocas. Toda a comunidade britânica – incluindo o filho de Joan – ficam estarrecidos ao descobrir que aquela simpática velhinha havia sido uma espiã dupla.

Ainda na universidade, Joan se envolvera com alunos que militavam em grupos comunistas. Na confusa era anterior à Segunda Guerra, a ameaça maior era Hitler e seu poderoso exército nazista, e já havia relatos de perseguições a judeus. Um deles, William (Fred Gaminara), era um sedutor judeu-alemão, que ao lado de sua prima Sonya (Tereza Srbova), tentava atrair estudantes para a sua causa.

Joan era uma brilhante aluna de Física Teórica na universidade, e ao se formar foi trabalhar numa empresa aparentemente civil, mas que na verdade conduzia as pesquisas atômicas no Reino Unido. Seu chefe imediato era Max (Stephen Campbell Moore), um entusiasmado cientista que ajudava bastante a moça em um ambiente machista e excludente.

O grande choque para Joan foi descobrir que o objeto de seus estudos servira tão somente para matar milhares de pessoas inocentes no Japão, com as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. É quando ela decide repassar as informações que dispõe para equilibrar as forças entre Estados Unidos e União Soviética.

“O Espião Inglês” também trata sobre a Guerra Fria, no início da década de 1960. Oleg Penkovsky (Merab Ninidze), um oficial russo detentor de inúmeras condecorações por atos de bravura na Segunda Guerra, fica extremamente preocupado com o extremismo do líder soviético Nikita Khrushchev. Nessa época, a União Soviética já possuía um vasto arsenal de armas atômicas, e Khrushchev parecia disposto a usá-las, sem se importar se aquilo poderia implicar no fim do mundo.

 Penkovsky decide agir, e manda uma mensagem aos americanos, oferecendo-se para passar informações sensíveis. Os americanos não querem se envolver diretamente, pois já existia muita tensão entre os dois blocos, e pedem ajuda ao Reino Unido. Para não se envolver oficialmente, eles decidem usar um civil para fazer o contato, e o escolhido é Grevile Wynne (Benedict Cumberbatch), um empresário amante de bebidas e negociatas.

Relutante, Wynne vai a Moscou, e cria uma improvável amizade com o russo, ao mesmo tempo em que serve de pombo correio para as informações secretas. Com o tempo, a tensão aumenta, e chega a um clímax na Crise dos Mísseis de Cuba.

Os dois filmes são muito interessantes, e apesar de falar de fatos reais, conseguem passar um clima de tensão muito empolgante. Isso se deve não só a produções cuidadosas, com excelentes recriações de época, como também ao trabalho dos atores, em especial, Judi Dench e Benedict Cumberbatch.

É muito interessante observar esse período com um olhar crítico, pois embora tenhamos sido doutrinados para achar que o lado americano era bom e o soviético mau, ambos tinham objetivos de dominação, e apesar de criticar as ditaduras comunistas, os Estados Unidos apoiavam e estimulavam as ditaduras de extrema-direita, principalmente em nosso continente.

Tudo isso mudou a partir do final da década de 1980, com a reunificação das Alemanhas e o fim da União Soviética. Após um longo período de adaptação do mundo inteiro, o fantasma do comunismo reapareceu, mas basicamente na cabeça dos simpatizantes de extrema-direita. Isso se deve, creio, à necessidade de ter um inimigo. Na falta de um inimigo real, cria-se um imaginário.

O mundo mudou, a Guerra Fria findou, mas o extremismo parece se fortalecer a cada dia, com a ajuda de líderes populistas, redes sociais, notícias falsas e teorias conspiratórias. Se na época da Guerra Fria tínhamos medo de uma guerra nuclear, o que dizer de hoje, quando essa guerra existe entre irmãos, amigos e cidadãos de um mesmo país? Pior que, agora, mesmo os espiões bem intencionados não farão diferença.