Afinal, o que significa “baseado em fatos reais”?

Para muita gente, quando se anuncia um filme ou um seriado “baseado em fatos reais”, isso é um atrativo a mais. Afinal de contas, o que se espera é saber como aconteceu um determinado fato que foi relatado entre muitas outras notícias na televisão ou nos jornais. Mas, será que podemos nos fiar nessa “realidade”? Nem sempre, como veremos adiante.

A primeira vez em que tomei consciência de que nem sempre o cinema retrata a realidade foi nos anos 1970, ao assistir ao filme “Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas” (“Bonnie and Clyde”, EUA, 1967). O filme contava a história do famoso casal de assaltantes de bancos, vividos na tela por Faye Dunaway e Warren Beatty. O filme passava a ideia romântica de um casal que tem sua história de amor interrompida ao serem mortos numa emboscada pela polícia.

Algum tempo antes, eu havia lido uma reportagem sobre eles, os crimes cometidos e as circunstâncias reais da morte do casal. Claro, ao assistir o filme observei as diferenças, mas me surpreendeu a reação de minha namorada na época, que ficou revoltada com o destino do infeliz casal. Isso me levou a pensar em como o cinema pode distorcer uma história buscando atender os seus próprios objetivos – lucro, enfim.

Não podemos esquecer que cinema antes de tudo é um negócio que movimenta muito dinheiro. Ninguém quer correr o risco de um fracasso de bilheteria simplesmente por contar uma história que não agrade ao grande público. Por isso, o uso de termos “baseado” e “inspirado” servem de salvo-conduto para fazer grandes alterações sem o menor peso na consciência.

Outro dia fiz uma crítica sobre o filme “Treze Vidas: O Resgate” (“Thirteen Lives”, UK/TAI, 2022) e a série “O Resgate na Caverna Tailandesa” (“Thai Cave Rescue”, TAI/EUA, 2022), onde chamava a atenção de vários pontos que diferiam uma produção da outra, embora baseadas no mesmo fato real. Alguns dias depois, vi o documentário “Os 13 Sobreviventes da Caverna” (“The Trapped 13: How We Survived the Thai Cave”, EUA/TAI, 2022), com depoimentos dos verdadeiros garotos, e mais diferenças ficaram visíveis. Qual é o verdadeiro? Talvez o último, mas com certeza o filme e a série servem mais como entretenimento.

Outro filme que me chamou a atenção foi “Caçadores de Obras-Primas” (“The Monuments Men”, EUA, 2014), estrelado por George Clooney e Matt Damon. Gostei muito do filme e procurei o livro em que ele foi baseado, “The Monuments Men” escrito por Robert M. Edsel. Ao ler o livro, descobri que a história real foi menos glamurosa e aventureira do que a mostrada no filme. Isso desmerece o filme? Não, afinal de contas, foi “baseado em fatos reais”.

Quando as diferenças entre o que é mostrado nas telas e a vida real deve-se apenas a torná-lo mais palatável para o público, até podemos compreender. O problema maior é quando existe uma intenção por trás da imagem que é mostrada para o público. “A verdade está no fundo de um poço”, já dizia Jorge Amado em sua obra-prima “Os Velhos Marinheiros”, e nem sempre é interessante trazê-la para a superfície.

A mais que famosa Operação Lavajato inspirou a série “O Mecanismo” (BRA, 2018-2019), onde o diretor José Padilha expõe sua visão da operação, apoiando-se fortemente no que dizia o então juiz federal Sérgio Moro. A série foi fortemente criticada por apresentar uma visão distorcida do processo e o próprio diretor declarou seu arrependimento ao ter confiado em Moro. Depois de ter deixado a toga, o ex-juiz foi julgado parcial, e a maioria das suas sentenças estão sendo contestadas.

A essa altura o leitor deve estar se perguntando o que deve fazer, se aceita ou rejeita um filme ou uma série sobre eventos reais, sabendo que podem estar maquiados, manipulados ou distorcidos. Bem, primeiramente, cinema é entretenimento, não há problema em se fazer mudanças para tornar um filme mais agradável de assistir.

A parte que cabe ao espectador, e isso serve para qualquer aspecto da vida, é nunca aceitar a primeira informação como verdade absoluta. Infelizmente, hoje vivemos imersos em um oceano de fake news, de informações intencionalmente distorcidas para atender objetivos escusos de políticos ou empresas.

Mais que tudo, precisamos deixar a preguiça de lado e pesquisar sobre um assunto que nos interessa, e que pode ser muito diferente do que é mostrado naquele filme, no programa de televisão, no vídeo do YouTube e WhatsApp, ou mesmo da notícia “quente” contada pelo amigo fofoqueiro. Nunca foi tão necessário extrairmos a Verdade do fundo dos infinitos poços onde elas estão escondidas.