Ela

Alma gêmea

A indústria do cinema parece ser a aplicação real da teoria de Lavoisier de “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Por isso, sempre é uma surpresa agradável encontrar um filme como “Ela” (“Her”, EUA, 2013), mostrando que ainda é possível encontrar algo diferente e original no cinema. Afinal, como pode alguém misturar ficção-científica, drama, romance e especulação sociológica no mesmo filme – e fazer algo muito interessante?

Ao contrário da maioria dos filmes de ficção-científica onde os efeitos especiais enchem os olhos dos espectadores, o ambiente em “Ela” não parece ser muito diferente de qualquer moderna metrópole do mundo atual. A não ser pelo fato de que tudo é limpo, impessoal, sem pobreza aparente.

Nesse futuro indeterminado, o traço mais marcante – além da impessoalidade – é que tudo é hiperconectado. Os personagens interagem com os computadores em qualquer lugar, no trabalho, no metrô, na praia, ou em casa, sem distinção de ambiente pessoal, doméstico ou profissional. O objeto mais familiar é algo parecido com um celular que serve de interface pessoal com o sistema, embora toda comunicação seja feita por voz.

Theodore (Joaquin Phoenix) é uma figura típica deste mundo, um homem solitário que vem de uma recente e ainda mal digerida separação com Catherine (Rooney Mara), que o conhece desde a infância, mas que preferiu trocar o casamento pela carreira acadêmica. Theodore ganha a vida escrevendo cartas para terceiros, ditando-as para o computador, que as imprime em letras cursivas e envia aos destinatários. Ironicamente, a empresa tem um nome tipo “cartas escritas à mão”.

Sentindo-se cada vez mais solitário, Theodore tem como únicos amigos a vizinha Amy (Amy Adams), uma designer de videogames, e o recepcionista da empresa, Paul (Chris Pratt), que é um grande fã das cartas que ele escreve.

Um dia, ele é atraído pelo anúncio de um sistema operacional pessoal, baseado em inteligência artificial. Com algumas poucas perguntas desconexas o sistema é configurado, e uma linda voz feminina (Scarlett Johansson) passa a interagir com Theodore. A primeira prova da capacidade do sistema operacional é quando ele pergunta se ela tem um nome. Ele responde que sim, Samantha. Quando ele pergunta como ela escolheu, ela diz que, em alguns milissegundos ela leu um livro com milhares de opções, e gostou daquele.

Se no começo Samantha era para ele apenas um programa superdesenvolvido, aos poucos ela o ajuda a organizar seus arquivos, faz contato com uma editora para publicar suas cartas, arranja um encontro com uma garota (Olivia Wilde), e até mesmo faz sexo com ele – virtual, é claro.

Em pouco tempo ele percebe que está namorando com Samantha, e até a apresenta para outras pessoas como sua namorada. Talvez por já viver em um mundo tão conectado, as pessoas não estranham, e até fazem passeios de casais. A questão que soa mais estranha não é a de um homem se apaixonar por um programa de computador. A questão é, será que a recíproca também pode acontecer?

O mais interessante em “Ela” não é apenas o relacionamento amoroso entre um homem e um programa, mas como é mostrado de uma forma consistentemente crível. O relacionamento entre eles era, basicamente, de conversas. Está certo que entre os humanos as coisas sempre começam pelo físico, mas só duram se houver uma sintonia de pensamentos. Tem até aquela piadinha que diz que deve se escolher um companheiro com quem se goste de conversar – até porque, um dia, só restará isso mesmo para fazer…

Além de ter uma história interessante, “Ela” se desenvolve graças a um bom elenco, bem dirigido por Spike Jonze, embora a grande carga cênica recaia sobre Joaquin Phoenix, que usa um bigodão e óculos grossos, que lhe dão a aparência do Sr. Batata de “Toy Story”. A outra metade do crédito recai em Scarlett Johansson, cuja belíssima voz traz uma grande credibilidade para a imaterial Samantha. Aliás, jamais assistam este filme dublado, pois vai perder toda a essência.

Num papel secundário, mas, importante, Amy Adams também contribui para a construção do ambiente amargurado e impessoal do mundo retratado no filme. Amy conseguiu a façanha de estar em dois dos filmes indicados para o Oscar, este e “Trapaça” (“American Hustle”, EUA, 2013). “Ela” ganhou merecidamente o Oscar de Melhor Roteiro Original, além de ter sido indicado para mais quatro categorias, inclusive de Melhor Filme. Ao todo foram 83 prêmios e 186 indicações em diversas premiações.

O final do filme é um pouco ambíguo – para os padrões hollywoodianos – mas, certamente, irá inspirar longas discussões sobre o seu sentido, principalmente em uma boa mesa de bar.

Embora não seja do estilo “cinemão”, com cenas de ação e efeitos especiais, “Ela” traz um sabor diferente da lugar-comum de Hollywood, e acredito que os espectadores verão muitos paralelos com o mundinho em que vivemos.

“Ela” pode ser assistido no serviço de streaming Amazon Prime Video.