Flashback

O tortuoso caminho feminino

Confesso que quando li a sinopse de “Flashback” (FRA, 2021), não fiquei muito empolgado. Tudo parecia indicar uma comédia francesa imitando as comédias americanas, coisa que eu detesto assumidamente. Contudo, ao assistir, percebi que o que estava errado não era o filme, mas o meu olhar. “Flashback” antes de tudo é uma poderosa e divertida crítica ao machismo e ao injusto tratamento às mulheres ao longo dos séculos. O timing não poderia ser melhor, considerando o recente 8 de março, o Dia da Mulher.

A história inicia na França moderna, onde Charlie (Caroline Vigneaux), uma combativa advogada, é obrigada a assumir um caso indefensável de estupro. Charlie se dedica totalmente à profissão, evitando a mãe que a adora, a quem culpa por ter se separado do pai.

O julgamento, que parecia ser fadado ao fracasso, muda de rumo quando Charlie usa o argumento de que a vítima manifestou o desejo de ter sexo ao usar uma calcinha fio dental. O resultado do julgamento causa furor por culpabilizar a vítima, mas para Charlie o que interessa é o êxito. Ao sair para comemorar, ela se embriaga e usa drogas, sendo levada para casa pelo taxista Hubert (Issa Doumbia), que a questiona por sua ação no tribunal. Charlie não lhe dá importância e vai para casa, onde cai e bate a cabeça.

Quando ela acorda, está em uma pocilga, e os camponeses vendo-a vestida de calça comprida acusam ela de ser uma bruxa. Logo ela é presa e conduzida a um tribunal eclesiástico no século 15 junto com outras acusadas de bruxaria, entre as quais Joana d’Arc (Emy Ltr).

Ainda sem ter ideia do que se passava, Charlie acha que ainda está numa bad trip, na ressaca das drogas que tomou na noite anterior. Enquanto Joana D’Arc e outras são condenadas à fogueira, ela é enviada para o teste da água. Ela é jogada num rio com as mãos e pés amarrados. Se se afogar, é inocente, se conseguir nadar, é bruxa.

Charlie perde consciência, e quando acorda está no escritório de um banco. Para seu espanto, descobre que está nos anos 1960, onde as mulheres francesas, para ter uma conta em banco, precisavam da autorização do marido. Numa conversa com Hubert, que faz às vezes de consciência e guia espiritual, ela continua sem dar importância aos problemas femininos da época.

E assim, Charlie continua sua jornada pelo tempo, passando pela Era das Cavernas, Revolução Francesa, e outros momentos marcantes da história francesa, encontrando figuras históricas como Marie Curie (Lison Daniel), George Sand (Suzanne Clément), Olympe de Gouges (Sylvie Testud), Napoleão Bonaparte (Florent Peyre), Robespierre (Gad Elmaleh) e muitos outros. Algumas situações estranhas acontecem, como encontrar com ela mesma criança ou ajudar a mãe no seu próprio nascimento. Mas, o que mais a choca é descobrir a verdadeira face do pai, e o papel heroico que sua mãe desempenhou.

Posteriormente, Charlie volta ao seu tempo antes do polêmico julgamento, onde literalmente muda de lado, passando a atuar em favor da vítima. O resultado final tem um desenlace cômico, que jamais aconteceria num tribunal real. Mas, o mais chocante é constatar que o que se passa na vida real é muito mais absurdo do que possa imaginar a ficção, como mostram várias cenas reais de protestos devido à culpabilização da mulher simplesmente pela roupa que veste.

Apesar de ser uma comédia boba, com cenas ficcionais, “Flashback” funciona como uma importante crítica social, não só expondo a extrema desigualdade a que são submetidas as mulheres como a cegueira deliberada da população – inclusive de muitas mulheres. O Dia da Mulher só vai ter um significado real quando se entender que não é um dia de homenagens falsas, mas sim um dia de luta e de consciência pelo fim da desigualdade.

Os méritos do filme vão para Caroline Vigneaux, que não apenas interpretou o papel principal, como também dirigiu e escreveu o roteiro, em parceria com Yaël Langmann.

Este filme pode ser visto na plataforma de streaming Amazon Prime Video.