Cine Holliúdy

Ode de amor ao cinema e ao nordeste

Confesso que sou muito crítico com as recentes produções cinematográficas brasileiras, que parecem contentar-se em serem cópias de programas televisivos, repetindo fórmulas de humor sem criatividade para garantir boas bilheterias. Mas, fui surpreendido por esta singela jóia, “Cine Holliúdy” (BRA, 2012), uma surpreendente declaração de amor ao cinema e à pacata vida das pequenas cidades nordestinas dos anos 1970.

A maioria dos não-nordestinos que for assistir “Cine Holliúdy” vai achar que é apenas um programa exótico, eventos em uma pequena cidade, onde as pessoas falam muitas gírias regionais, sem nada especial. Na verdade, o “cearencês” que é marketing do filme, é a boa e velha linguagem do dia a dia em qualquer rincão nordestino.

Não tiro a razão desse público, até porque, conforme é mostrado no prólogo do filme, ele é baseado nas memórias do diretor. Mas, não são quaisquer memórias, mas, o fim de uma era de inocência, onde os germes da globalização começavam a ser plantados, com a iminente chegada da televisão no interior do Nordeste.

Permitam-me os meus queridos leitores uma intervenção mais pessoal deste cronista. A verdade é que, por ter vivido minha adolescência em uma pequena cidade paraibana, e ter vivenciado este momento crucial, sinto-me extremamente confortável para corroborar com as lembranças do diretor – que não são diferentes das minhas.

Até o final da década de 1960, quem vivia fora das capitais não tinha quase opção de televisão. Os aparelhos caríssimos, só existentes nas casas dos abastados, exibia – com péssima qualidade – sinais gerados a partir dos grandes centros, Rio, São Paulo, Recife, etc..

Em função disso, a vida corria mansa, com uma feliz ignorância dos acontecimentos globais, dos quais só se tinha conhecimento através dos semanários impressos “O Cruzeiro” e “Manchete”. As noites eram divididas entre a missa na matriz, as conversas dos vizinhos nas calçadas, as brincadeiras e namoros na praça, e uma única sessão diária no cinema da cidade. O cinema, nessa época, merecia o slogan “Cinema é a melhor diversão”, e unia ricos e pobres em um templo democrático a preços muito baratos.

Esse ambiente começou a mudar em 1970, com as transmissões em cadeia nacional “via Embratel para todo o Brasil”, principalmente gerados pela TV Tupy, a Globo da época. O cinema ainda continuava a ser a diversão nobre, mesmo que os títulos mais famosos demorassem meses – ou anos – para chegar nos rincões mais isolados.

A cidade em que eu morava, Santa Rita, apesar de próxima da capital, mantinha muitas características de uma cidade pequena, e desenvolvi minha paixão pelo cinema assistindo incontáveis filmes nos saudosos Cine Avenida e São João.

Mas, o avanço da televisão e a despreparo da rede distribuidora cinematográfica provocaram uma decadência constante e avassaladora das salas de cinema. Se antes a programação era variada e eclética, aos poucos foi sendo substituída por produções baratas de Hong Kong, criadas na esteira dos filmes estrelados pelo famoso Bruce Lee.

É essa virada crucial que é retratada pelo filme de Halder Gomes. Meio sem história, o filme é mostrado pelo ponto de vista de Francisgleydisson (Edmilson Filho), um homem sonhador, que encanta o filho com as histórias que inventa. Quem faz o equilíbrio do feijão e do sonho é Maria das Graças (Miriam Freeland), que dá suporte às fantasias do marido trazendo-o à realidade quando necessário.

A família se estabelece na cidade de Pacatuba, no interior do Ceará, mas que poderia ser em qualquer lugar do Nordeste, e Francisgleydisson investe todo o seu capital e energia para reativar um pequeno cinema, que será alimentado por velhas cópias de filmes que lhe restam, a maioria de kung-fu.

No filme estão presentes todas as figuras icônicas da pequena cidade: o prefeito, o padre, o delegado, a moça namoradeira, o menino rico dono da bola, o bebum, o homossexual, e até o cego Isaías, vivido pelo cantor Falcão.

Através destes personagens é feita uma colcha de retalhos com “causos” e histórias populares do Nordeste, que vão desde a irascibilidade de seu Lunga (“Como foi que o senhor virou o carro nessa reta? Foi assim, ó!”) aos nomes exóticos adaptados como Francisgleydisson e Valdisney (originariamente Walt Disney).

A trilha sonora traz muitos sucessos da época, principalmente de Odair José, Fernando Mendes e Márcio Greyck (que faz uma ponta como o vigarista que compra a veraneio Wanderleia).

Mais do que uma história regular, o filme é uma declaração de amor a um Nordeste que não existe mais, atropelado pela televisão do Sul-Maravilha, pela violência da urbanização, e pela extinção da cultura popular, onde até o forró pé-de-serra foi substituído por um barulho industrializado.

Resta sempre a esperança, como diz o protagonista do filme (o “artista”, como era dito na época), de que o cinema nunca morra, desde que haja uma história para contar, e alguém para assistir.

“Cine Holliúdy” é um filme diferente, com suas falhas e limitações, mas, merece ser assistido, principalmente pelos nordestinos, para matar as saudades, ou, pelo menos, ter ideia de uma era maravilhosa, que só deixou saudades e boas lembranças.

Pouca gente sabe, mas “Cine Holliúdy” é um remake de um curta-metragem dirigido por Halder Gomes em 2004 com o título “Cine Holliúdy: O Astista Contra o Caba do Mal”. Foi feita uma sequência em 2018, “Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral” e um seriado em 2019 com dez episódios, derivada do filme original.

“Cine Holliúdy” pode ser assistido nos serviços Telecine e Globoplay.