O filme dublado chegou ao paraíso

Quando eu era menino pequeno em Santa Rita, na Paraíba, televisão era um bicho tão raro quanto dinheiro sobrando na carteira de trabalhador. Em compensação, cinema era algo barato e disponível, que merecia o slogan “Cinema é a melhor diversão”. Toda cidade tinha ao menos uma sala e nas maiores esse número chegava às dezenas.

O curioso daquela época é que a esmagadora maioria dos filmes era legendado. As raras exceções eram um ou outro filme infantil ou algum épico famoso como “Os Dez Mandamentos” e “Ben-Hur”.

Mais curioso ainda é que com uma população predominantemente analfabeta, os cinemas tinham uma boa frequência, chegando a lotar nos finais de semana. E devo salientar que as salas eram enormes, não eram como as minúsculas salas multiplex atuais.

Com o passar do tempo, a televisão conquistou seu espaço, invadindo praticamente todas as residências, e impondo um novo padrão de programas, novelas e exibição de filmes, todos dublados.

Com a decadência dos cinemas, e uma programação nem sempre atualizada (quem era fã da Sessão da Tarde sempre via filmes repetidos, com vinte anos de idade – e os da madrugada eram mais velhos ainda), o amante do cinema viu com ardor a chegada do videocassete, que prometia filmes recentes, sem comerciais, e na hora que se quisesse.

Claro que isso exigia um equipamento caro – o videocassete. Meu primeiro aparelho, “importabandeado” da Zona Franca de Manaus, custou o equivalente a mil dólares no início dos anos 80, uma pequena fortuna na época.

Logo descobri que o caminho do céu era cheio de dificuldades. As fitas vinham de origem legendadas ou dubladas, e já por diversas razões, eram estas últimas a maioria do acervo das videolocadoras.

Quando se difundiram os canais por assinatura, muita gente achou que por serem pagas pressupunha-se que teriam uma programação voltada para um público mais seleto, teoricamente mais culto, para o qual o uso de legenda não era impeditivo, e até um incentivo pelo áudio original. O mesmo aconteceu mais recentemente com os serviços de streaming tipo Netflix, Amazon Prime e assemelhados.

Isso pode ter sido verdade por certo tempo, mas, apesar dos esforços neoliberais, aconteceu o acesso de uma nova classe consumidora aos itens de consumo antes privativos das classes média e alta. Isso também influenciou a oferta de programação dublada em português.

De acordo com pesquisa do Instituto Data Popular realizado em 2020, a maioria dos brasileiros prefere assistir filmes dublados. Essa preferência atinge seis em cada dez brasileiros. E não é privilégio de classes sociais, pois embora atinja 76% da classe C, também agrada 49% das classes A e B. Na Netflix o dublado é preferido por 84% dos jovens e 50% dos adultos. E os cinemas respondem ativamente a essa preferência. Em Natal, nesta semana, das 74 sessões oferecidas pelas três redes de cinema em operação, 60 são dubladas.

É curioso que isto aconteça quando temos um índice de alfabetização muito maior do que quando eu era menino, mas, isso não parece ser a causa mais importante. Além da grande massa da nova Classe C que aderiu aos canais de assinatura não estar habituada às fugazes e irrequietas legendas, após anos e anos assistindo pacificamente os filmes dublados na TV aberta, há toda uma geração de adolescentes, muitos deles oriundos de classe média e alunos de colégios particulares que também dão preferência aos filmes com som em português.

Outro fato curioso, que foi revelado na pesquisa é a preferência pela memória afetiva. Muitos espectadores dizem optar pela dublagem por filmes e séries que assistiram na infância e cujas vozes ficaram associadas a um período agradável. É importante salientar que as empresas de dublagem brasileira sempre tiveram um ótimo padrão de qualidade, e muitas animações recentes tiveram a participação de atrizes e atores consagrados.

Claro que existem muitos jovens que gostam de ler, principalmente a geração incentivada pelos livros de Harry Potter, que não encontram dificuldades em acompanhar legendas escutando o áudio original. Mas, infelizmente, sou obrigado a aceitar que estes representam uma minoria. Valorosa, mas, ainda assim, minoria.

É importante salientar que não estou fazendo juízo de valor. Este é o retrato de nossa realidade e devemos aceitá-lo, mesmo que não goste. Acredito até que ainda no curso de minha vida, vou encontrar em alguma gramática oficial a expressão “pra mim fazer”, já que a imensa maioria da população fala assim.

 Em muitos países da Europa, como Alemanha e França, a dublagem de filmes e programas estrangeiros é o que predomina. Porém, nesses mesmos países é comum os jovens estudarem línguas estrangeiras e possuírem um nível cultural invejável. Não me importo que todos os filmes da televisão sejam dublados, só espero que não desçamos ao patamar dos americanos, que acham que o inglês é a única língua do universo.

One Reply to “O filme dublado chegou ao paraíso”

  1. Jacqueline Ribeiro

    Muito bom Newton! Não troco um filme legendado , com áudio original. Aliás não gosto de dublado. Obrigada pelo artigo!

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