Na Estrada

Um dos filmes que mais despertou expectativa antes da estreia foi “Na Estrada” (On the Road”, EUA, 2012), do diretor brasileiro Walter Salles – e não foi só pelo brevíssimo topless de Kristen Stewart. O filme é baseado no livro “On the Road – Pé na estrada”, de Jack Kerouac, publicado em 1957, e que causou uma enorme repercussão no mundo.

Essa premissa já gera um problema para nós, pobres críticos de cinema. Como falar de uma obra importantíssima que publicada pela primeira vez quando este sexagenário que vos fala tinha feito apenas o primeiro aniversário? Bem, parafraseando o lendário Didi (o jogador, não o comediante), “livro é livro, filme é filme”. Dito isto, passemos ao filme.

A história inicia em 1947. O jovem Sal Paradise (Sam Riley) tem a obsessão de tornar-se um escritor. Ainda perturbado pela recente morte do pai, o jovem divide-se entre a velha máquina de escrever, onde não consegue criar nada, e as noitadas com os amigos igualmente aspirantes a intelectuais, como Carlo Marx (Tom Sturridge).

Numa destas noitadas ele é apresentado a Dean Moriarty (Garret Hedlund), um jovem bonito e sedutor, recém-chegado da Costa Oeste. Ele está acompanhado de Marylou (Kristen Stewart), uma garota de 17 anos, que largou tudo para ficar com Dean.

Sal fica fascinado com a imagem de Dean. Como ele próprio narra, só o atraem os personagens loucos, e ninguém parece ser mais louco que Dean. O jovem bebe como uma esponja, transa como coelho e fuma como uma chaminé – cigarros normais ou maconha, sem preconceitos.

Dean volta para o Oeste com Marylou, levando Marco junto. Ao receber o convite para unir-se a eles, Sal inicia suas andanças pelas estradas, conhecendo tipos diversos, inclusive a reservada Terry (a brasileira Alice Braga), com quem tem um caso fugaz. Sal conhece a doce e resignada Camille (Kirsten Dunst), a quem Dean jura amar, enquanto mantém inúmeros casos com outras mulheres.

Mais tarde, já em Nova York, resolvem viajar para a Califórnia, cruzando os Estados Unidos através da lendária Rota 66. Mais uma vez reunidos, Sal, Dean e Marylou dividem o carro, a maconha, as bebidas, os conceitos filosóficos e as paisagens fascinantes do caminho.

Convivendo tão intimamente com Dean, Sal testemunha a desconstrução do herói que ele mesmo criara e que se revelava não um rebelde enfrentando o mundo, mas simplesmente um bad boy inconsequente e imaturo, para quem nem mesmo a amizade e a família representavam valores reais.

Em relação ao livro, percebi que faltou um pouco de contextualização histórica para situar aqueles jovens – e a sua necessidade de rebeldia. Em 1947 o mundo ainda se recuperava da Segunda Grande Guerra, a Europa ainda estava em ruínas, e muitos jovens americanos tinham voltado há pouco dos cenários de guerra, onde a única coisa que importava era matar o inimigo.

Os Estados Unidos, apesar de terem participado com homens e recursos, não havia sido invadido, como a França e a Rússia, ou mesmo bombardeado pesadamente, como a Inglaterra e a própria Alemanha. A sociedade mantinha a sua vida seguindo os mesmos padrões de sempre, notavelmente conservadora e preconceituosa.

Para muitos jovens como Sal, uma vida tradicional, emprego, casamento, filhos, morar no subúrbio, etc., mostrava-se uma opção vazia, ao mesmo tempo em que a sede de aventuras e de crescimento intelectual ensejava algo que eles mesmos não sabiam o que era. No filme, são mostradas cenas onde os jovens frequentavam bares e casas de negros, curtiam suas músicas e mantinham relações de amizade, algo que era inadmissível para os padrões da sociedade daquela época.

Essa sensação de não saber para onde ir e do desafio aos costumes foi magnificamente capturada no roteiro de Jose Rivera. A atuação do elenco é impecável, sob a direção segura de Walter Salles, até mesmo Kristen Stewart, que foge da sua insossa personagem de “Crepúsculo”. O destaque, porém, é de Kirsten Dunst, que vive a sofrida Camille, e de Garret Hedlund, que cria um Dean cafajeste e sedutor.

Um personagem à parte é a própria Rota 66, rodovia que cruza diagonalmente os Estados Unidos, símbolo de uma época onde os carros eram baratos e a gasolina custava centavos. São belíssimas paisagens captadas pela competente fotografia de Eric Gautier.

Uma curiosidade adicional sobre a obra de Jack Kerouac tem a ver com este que foi o seu livro mais famoso. A versão publicada em 1957 foi editada, tendo os nomes das pessoas sido trocados e muitas situações suavizadas para reduzir o impacto na conservadora sociedade da época. No aniversário de cinquenta anos da primeira publicação foi lançada a versão original tal e qual fora escrita por Kerouac, com toda a crueza de expressão do autor ainda inédito. As duas versões estão disponíveis no mercado.

“Na Estrada” é um filme fora do padrão, não apenas pela obra em que se baseia, como também pela temática universal apresentada na tela, a de alguém procurando o seu lugar no mundo, nem sempre da maneira mais convencional. Na dúvida, assista.

Este filme está disponível na plataforma de streaming HBOMAX.