Ensaio Sobre a Cegueira

 

Em terra de cegos, quem tem cego é rei…

 

Sempre que descubro que um livro que eu gosto vai virar filme, eu fico tenso, pois nem sempre as adaptações são bem sucedidas. Mas, no caso do filme “Ensaio Sobre a Cegueira” (“Blindness”, EUA/BRA, 2008), foi a união de duas mentes brilhantes da língua portuguesa. O livro de mesmo título foi escrito pelo Nobel de Literatura José Saramago, e o filme dirigido por Fernando Meirelles, autor de “Cidade de Deus”. Adicione-se a isto um elenco de primeira, e o resultado foi um filme excepcional.

A história inicia em uma época e lugar não identificado, provavelmente nos Estados Unidos. Um homem (Yusuke Isea) é acometido por uma estranha cegueira no meio do trânsito. A doença tem um caráter misterioso, pois como o Médico (Mark Ruffalo) constata, não há nenhuma alteração fisiológica, e ao invés da escuridão o homem vê tudo leitoso.

Logo o Médico também é acometido pela “cegueira branca”, como é denominada, assim como as pessoas que estavam no consultório: o Velho com um Tapa-olho (Danny Glover), a Garota de Óculos Escuros (a brasileira Alice Braga), um Menino (Mitchell Nye), e outros mais.

Quando a doença toma proporções epidêmicas, o governo age da maneira que sabe fazer melhor: esconder tudo do público. O Médico e todo o grupo de contaminados é levado para um sanatório abandonado, onde são confinados e vigiados por soldados armados. Junto com o grupo vai a Mulher do Médico (Julianne Moore), a única que não havia sido acometida pela doença.

O Médico e sua mulher tentam administrar a situação, propondo um mínimo de organização, embora tenham dificuldades com o Ladrão (Don McKellar, o roteirista do filme), que se recusa a aceitar a situação e cria atritos com todos.

Logo, vão chegando mais e mais levas de doentes, apinhando os dormitórios e sofrendo os problemas de superlotação. Para complicar a situação, um grupo de recém-chegados decide se aproveitar da situação, dominando os outros através da força. Eles são liderados pelo autoproclamado Rei da Ala 3 (Gael Garcia Bernal), ajudado pelo Contador (Maury Chaykin), um cego de nascença, portanto, já acostumado com a situação.

As exigências do Rei, que a princípio eram dinheiro e jóias, passam a ser mais absurdas, como as próprias mulheres, para satisfazer a necessidade de sexo de seus homens. As mulheres se submetem, já que é a única maneira de conseguir comida, mas essa visão do inferno cria um sentimento de revolta na Mulher do Médico.

Essa revolta irá desencadear em um verdadeiro motim, onde a destruição e morte irão atingir todo o sanatório. É quando eles descobrem que estão sozinhos, entregues à própria sorte, pois os soldados que os guardavam haviam partido.

Ao sair do sanatório, o grupo descobre que estão em um mundo de cegos, completamente perdidos, no completo caos. Liderados pela Mulher do Médico, única pessoa capaz de enxergar, eles atravessam um cenário de horror e abandono, tentando encontrar um porto seguro. Nesse mundo sem visão, as pessoas aprendem a se ver de outras formas, criando novos conceitos e regras, na adaptação e aceitação da nova vida.

Embora seja declaradamente apocalíptico, “Ensaio Sobre a Cegueira” não tem nenhuma conotação pejorativa com os cegos. O filme traz uma interessante especulação sobre as relações humanas em um ambiente diferente daquele a que estamos acostumados, com as regras e costumes da sociedade moderna. Será que agiríamos diferente, se estivéssemos submetidos às mesmas condições dos personagens? Duvido muito.

É possível que algumas plateias reclamem das cenas mais cruas, com sujeiras, pessoas nuas circulando (nenhuma bonita, fora a Alice Braga), simulações de estupro, etc.. Mas, se lembrarmos de “Cidade de Deus”, quero crer que Meirelles suavizou muito as situações, pois num ambiente de caos, a coisa seria muito mais feia.

Além da atuação excepcional do elenco, principalmente Julianne Moore, Danny Glover e Alice Braga, a fotografia do filme é primorosa, graças ao diretor César Charlone, o mesmo de “Cidade de Deus”. Quanto à produção, são impressionantes as cenas panorâmicas da cidade arrasada e cheia de lixo, que deve ter sido de um trabalho absurdo.

O curioso é que “Ensaio Sobre a Cegueira” despertou o furor de associações de cegos, por entenderem que um dos personagens retratados denegria a imagem de pessoas numa condição tão desfavorecida. Essa visão, com o perdão da figura, é no mínimo míope.

É possível fazer outras leituras deste filme, se pensarmos na cegueira dos personagens como a ignorância política que está nos levando ao caos social, econômico e sanitário atual. Será que Saramago, com sua mente brilhante, previu o nível de degradação mental da nossa sociedade atual? Metafórico ou real, espero que não cheguemos num nível de cegueira absoluta.