Jogos do Poder

 

Esquentando a Guerra Fria

 

É curioso que se travem acirradas discussões sobre acontecimentos históricos ocorridos há séculos, quando muitas vezes fatos recentes, de duas ou três décadas atrás, permanecem intencionalmente esquecidos. É sobre alguns destes fatos, que contribuíram para o fim da Guerra Fria, que trata o filme “Jogos do Poder” (“Charlie Wilson’s War”,EUA,2007), estrelado por Tom Hanks e Julia Roberts.

Acredito que para muitas pessoas a Guerra Fria seja um conceito vago, alguma coisa envolvendo os Estados Unidos e a antiga União Soviética. Na verdade, Guerra Fria foi um estado de conflito político-ideológico entre os Estados Unidos, defensores do capitalismo, e a União Soviética, defensora do socialismo, que durou desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945) até a dissolução do bloco soviético em 1991.

A denominação “fria” deve-se a nunca ter ocorrido um confronto direto entre as duas superpotências, embora sempre que houvesse a participação direta de uma em um conflito, a outra atuava apoiando a oposição. Foi assim na Guerra da Coréia, do Vietnã, e muitos outros conflitos menores, até a invasão do Afeganistão pela União Soviética, em 1979, quando os Estados Unidos, ainda sob a administração de Jimmy Carter, se dividia entre a defesa de direitos humanos e a crise dos reféns da revolução iraniana do aiatolá Khomeini.

É este momento que o filme focaliza, através da pessoa de Charlie Wilson (Tom Hanks), um deputado federal do estado do Texas. Apresentado como um político cujo maior feito em seis mandatos fora ser reeleito cinco vezes, ele parece encarar seu cargo apenas como uma forma viver confortavelmente, com acesso a muitas festas, mulheres, bebidas e cocaína, não necessariamente nesta ordem.

Com a atenção despertada por uma reportagem sobre os refugiados afegãos, Wilson decide dobrar a verba da CIA para operações no Afeganistão. Ele fica surpreso ao saber que o valor na época eram apenas cinco milhões de dólares. Mesmo dobrando, seriam insuficientes para alguma ação mais séria. Quando uma amiga socialite de seu estado, Joanne Herring (Julia Roberts), o convence a ir até o Paquistão, ele percebe a gravidade da ocupação soviética e decide ir a fundo na ideia de ajudar a resistência afegã.

O problema é que, ainda sob a influência apática de Carter, muito preocupado com direitos humanos, ninguém na administração americana queria se envolver em uma briga contra a União Soviética. O apoio que Wilson esperava veio através de um obscuro agente da CIA, Gust Avrakotos (Philip Seymour Hoffman).

Wilson atuou em várias frentes, desde a comissão de segurança do Congresso, que liberava o dinheiro para a Defesa, até uma inusitada associação de força opostas, conseguindo que um negociante israelense comprasse armas soviéticas do Egito, com dinheiro vindo da Arábia Saudita, para serem contrabandeadas via Paquistão. O detalhe é que todos estes países viviam em estado de guerra quase permanente.

“O Paquistão e o Afeganistão não reconhecem nosso direito de existir, acabamos de sair de uma guerra com o Egito e todos aqueles que já tentaram me matar ou matar minha família foram treinados na Arábia Saudita”, diz o israelense. “Nem todos”, retruca Avrakotos, “alguns foram treinados pela CIA.”

Conseguindo aumentar a verba inicial de 5 milhões de dólares, Wilson convenceu o Congresso a destinar um bilhão de dólares anuais para a compra de armas sofisticadas e equipamentos para os rebeldes afegãos, que seriam treinados por agentes da CIA. Obviamente, nenhum desses detalhes podia vir ao conhecimento oficial do mundo, pois estaria se passando do nível de uma guerra de influência para um conflito aberto entre as superpotências – ou seja, uma guerra nuclear de consequências imprevisíveis.

Com um ritmo surpreendente ditado pela ótima edição e diálogos que parecem rajadas de metralhadora, marca registrada do roteirista Aaron Sorkin, o filme consegue manter-se no limiar do drama e da comédia, sem demagogias ou falsos moralismos, mostrando como pessoas comuns podem alcançar feitos extraordinários. É bem verdade que os traços mais negros de Wilson, como o uso de drogas e bebidas é mostrado de maneira muito mais leve do que foi na realidade. Nada, porém, que tire o valor do filme.

Por outro lado, a atuação de Philip Seymour Hoffman como o cínico analista da CIA é excepcional, e sou taxativo em dizer que foi injusta a perda do Oscar para Javier Bardem, que embora seja um grande ator, não fez mais do que uma cara de múmia paralítica em “Onde os Fracos Não Tem Vez” (“No Country for Old Men”,EUA,2007).

O mais interessante de “Jogos do Poder” é a mensagem, sutil pero no mucho, da eternamente desastrada política externa americana, que é capaz de dar um bilhão de dólares para torrar em uma operação velada, e negar um milhão para construir uma escola. Não dá para esquecer que foram os próprios americanos que praticamente criaram todas as condições possíveis para que o radical regime talibã subisse ao poder no Afeganistão. Entre os homens treinados para combater os soviéticos estava Bin Laden, que alguns anos depois realizaria com sucesso o atentado de 11 de Setembro.

E para os que gostam destes detalhes, o filme é baseado no livro “Charlie Wilson’s War the Extraordinary Story of How the Wildest Man in Congress and a Rogue CIA Agent Changed the History of Our Times”, escrito por George Crile.