Admiráveis mundos novos

 

Recentemente, em uma postagem nesta coluna, falei sobre a amplidão da ficção-científica e seus subgêneros. Um deles, as sociedades utópicas e distópicas, é muito recorrente na literatura e no cinema. Um dos exemplos mais famosos é “Admirável Mundo Novo” (“Brave New World”), obra genial do escritor inglês Aldous Huxley, escrita em 1932, e que já inspirou filmes e séries, além de inúmeras outras referências.

Em meados dos anos 1970, quando eu estava no início do curso de Engenharia Civil, cursei uma disciplina de arquitetura chamada Psicologia Ambiental. A professora, uma jovem e entusiasmada psicóloga, nos incentivava a pensar “fora da caixa”, estimulando-nos a pesquisar assuntos os mais diversos.

Como sempre fui um entusiasta da ficção-científica, me propus a pensar nas sociedades do futuro. Foi quando ela perguntou se eu já havia lido os livros “Admirável Mundo Novo” e “1984”. Apesar de ser um veterano no gênero, não conhecia estas obras, e procurei por elas na biblioteca. A que consegui na época foi “Admirável Mundo Novo”, que li com sofreguidão, enquanto lidava com inúmeras disciplinas, estágios e outras atribulações da vida universitária.

Quatro décadas depois, minha atenção foi despertada novamente sobre a obra de Huxley com a série homônima da Peacock, realizada em 2020. Ao assistir o primeiro episódio, percebi que precisava rever o livro, e refiz a leitura na versão original. Confirmando o pensamento do filósofo Heráclito, de que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, minha compreensão foi totalmente diferente da que tivera aos vinte anos.

A história se passa em um futuro não especificado, após o mundo ter sofrido longas guerras e estar agora submetido a um poder central. A maior parte da população vive em modernas cidades na Europa, enquanto grupos de ameríndios ficam confinados em reservas no antigo oeste americano.

Ao longo dos anos foram implementadas profundas mudanças, sendo a principal delas a de que não existem mais famílias, casamentos, gravidez e nascimentos naturais. Todos são concebidos e criados em laboratório, e preparados para viver de acordo com a sua casta.

Assim, os embriões da casta Alfa receberão os melhores estímulos, os da Beta um pouco menos, decrescendo para as Gama, Delta e Épsilon. Os embriões da casta Épsilon, além de serem multiplicados em dezenas de gêmeos idênticos, ainda recebem menos oxigênio para serem adultos com capacidade mental reduzida, prestando-se para trabalhos puramente mecânicos. Alguns grupos recebem mais calor, para futuramente serem operários de minas subterrâneas ou siderúrgicas.

Todos recebem um condicionamento hipnopédico apropriado, de maneira a reforçar os valores desta nova sociedade. É estimulada a liberdade sexual, a separação das castas, a participação coletiva, enquanto se desestimula o individualismo e amizades pessoais, chegando ao ponto de considerar a ideia de paternidade uma blasfêmia.

Todos têm suas necessidades básicas atendidas, de acordo com suas castas, e graças à evolução da medicina, todos tem aparência jovem e bonita. Quando o organismo não consegue acompanhar o ritmo da vida, eles simplesmente vão para centros especializados e morrem. Como não há laços pessoais, ninguém sente falta de quem morreu, e a própria ideia de morte como fato natural é inculcado nas crianças desde cedo.

O principal valor desta sociedade é que todos devem ser felizes, e para isso existe a Soma, uma droga não viciante e sem efeitos colaterais, que elimina qualquer sensação de tristeza, raiva, ciúme, insatisfação, etc.. É a verdadeira droga da felicidade.

Neste mundo vivem o alfa Bernard Marx e a beta Lenina Crowe. Quando Bernard convida a jovem para passar um final de semana na reserva dos Selvagens, é apenas um programa turístico semelhante a uma visita ao zoológico.

Ao solicitar a permissão para a visita, Bernard descobre que seu superior fizera uma viagem semelhante duas décadas antes, e um acidente acontecera com a jovem que o acompanhara. Ela simplesmente desaparecera, e nunca mais tiveram notícias dela.

Ao chegar na reserva, Bernard conhece John, um jovem branco que vive entre os nativos, mas diz não pertencer a eles. Quando ele lhes apresenta sua mãe, Linda, Bernard faz a conexão e descobre quem são os dois. Com os devidos contatos, ele consegue permissão para levar John e Linda para New London, para reintegrá-los na vida civilizada.

Como seria de esperar, a adaptação é difícil. Linda, deformada pela idade, falta de cuidados apropriados e pela bebida, entrega-se ao consumo de soma. John, apesar do sucesso imediato pelo ineditismo, não consegue identificar-se com o modo de vida de New London, com um código moral totalmente diferente do seu, absorvido dos personagens de Shakespeare, do único livro que possuía e que lhe servia de referência. Como esses personagens, o seu destino também será trágico.

Apesar de ser referenciado em inúmeros livros e filmes, a obra de Huxley teve duas adaptações para a TV, em 1980 e 1998, e a série da Peacock em 2020. Curiosamente, cada uma destas adaptações baseou-se no universo criado por Huxley, mas seguiu um caminho próprio.

O filme de 1980, feito no formato minissérie em duas partes, foi o mais fiel ao livro. O figurino e os cenários lembram o padrão Star Trek original, e é considerado por muitos um clássico da ficção-científica. O único nome conhecido do elenco é Keir Dullea, o protagonista de “2001: Uma Odisseia no Espaço” (“2001: A Space Odissey”,EUA,1968). Infelizmente não está disponível no Brasil, a não ser via torrent – e sem legendas.

Em 1998 a história ganhou uma versão em filme para a TV, com Peter Gallagher no papel de Bernard Marx e Leonard Nimoy numa versão sorridente e descontraída que nos leva a indagar onde se escondera o Spock primeiro e único de Star Trek! Nessa versão os efeitos especiais são bem mais modestos, e as filmagens no “mundo civilizado” foram feitas em Los Angeles, sem muita maquiagem. John Cooper, o Selvagem foi vivido por Tim Guinee com um traje de cowboy perdido na cidade grande. Nesta versão foi dada muita ênfase ao casal Marx e Lenina, fugindo completamente da história original.

Na série mais recente, todo o universo imaginado por Huxley está representado com o melhor da computação gráfica, com efeitos especiais surpreendentes. A sociedade hedonista é mostrada por um elenco jovem e bonito, e o espectador já pode se preparar para algumas breves cenas de nudez e sexo simulado. Mais uma vez, as mudanças ocorrem na história em si.

A civilização fica em New London, uma metrópole moderníssima na Europa, enquanto que as reservas de Selvagens são populações confinadas por barreiras eletrônicas em alguma parte dos antigos Estados Unidos. Essas reservas são usadas como recreação pelos civilizados, para ter ideia das ideias absurdas dos povos do passado, como família, casamento, gravidez, prisões, etc..

Bernard Marx (Harry Lloyd) e Lenina Crowe (Jessica Brown Findlay) vão numa dessas excursões bem no momento em que explode uma sangrenta rebelião dos Selvagens. Eles são salvos por John (Alden Ehrenreich) e sua mãe Linda (Demi Moore), ela própria uma Beta que fora abandonada pelo companheiro após sofrer um acidente na reserva, vinte anos antes.

O grupo volta para New London, mas Linda morre devido a um ferimento de bala na fuga. Sozinho, John é conduzido por Bernard e Lenina por este estranho mundo com valores totalmente diferente dos que conhecera. Ele descobre que tudo ali é controlado por INGRA, uma inteligência artificial que conecta todos através de um dispositivo aplicado no olho, como se fosse uma lente de contato.

Ao longo dos dias, embora faça um relativo sucesso entre a população de New London, John começa a ter problemas devido a ter se apaixonado por Lenina, algo impensável ali. Ao ser acusado de assassinato, ele termina sendo transformado num líder involuntário de uma revolução dos Epsilons, a casta mais baixa. Na verdade, tudo se passa de acordo com um plano suicida de INGRA, e o destino parece ser a aniquilação total.

Quem me acompanhou até aqui percebeu que a série atual é algo bem diferente da ideia original de Huxley. Para quem nunca leu o livro, é uma ótima série de ficção, com um magnífico visual, e da forma como foi encerrada a temporada, é bem possível que haja uma continuação.

Se não houve fidelidade ao livro, é possível encontrar inúmeras referências ao filme de 1998, como uma morte num abismo, o deslumbramento de Bernard com seu novo escritório, e o nome da inteligência artificial. A novidade é essa nova luta de classes (ou castas) que nunca passou pela imaginação de Huxley.

Como toda obra de ficção-científica, o livro e suas várias versões são provocadoras para nos fazer pensar em que tipo de sociedade gostaríamos ou não de viver. Será que ficaríamos bem numa sociedade que impede o pensamento criativo e científico, mesmo com todas as necessidades básicas mais que atendidas? Ou seria isso simplesmente uma nova versão do pão e circo?