Filme recomendado: “9 ½ Semanas de Amor”

 

Jogos de amor e dor

 

Talvez, uma das mais fortes características da evolução do homem, seja a incorporação das fantasias ao sexo. Ou seja, o que mudou de Brucutú para cá é que transamos também com o cérebro, além das demais partes do corpo. Alguns exageram, fazendo tudo via computador, mas são as exceções. O mais comum são os jogos sexuais entre parceiros, o que é saudável e benéfico em qualquer relacionamento. Isto se torna um problema quando são ultrapassados limites além dos quais não existe retorno. Este foi o aspecto que mais me intrigou no filme que consolidou a carreira de Kim Basinger, “9 1/2 Semanas de Amor” (“Nine ½ Weeks”, EUA, 1986).

A primeira vez que assisti este filme foi na época da estreia nos cinemas. Enquanto brigávamos contra as remarcações no Plano Cruzado, todos comentavam sobre um filme erótico, estrelado por uma loura monumental chamada Kim Basinger. Ao assistir o filme, não achei grande coisa, exatamente por estar esperando uma carga erótica explícita que não acontece. A única coisa que achei interessante foi o animado strip da louraça.

Ao rever o filme, anos depois, fui agradavelmente surpreendido. A fotografia é fantástica, a trilha repleta de músicas conhecidas, a atuação dos atores excelente, e Mickey Rourke, acreditem ou não, virou símbolo sexual. Contudo, o ponto alto do filme é o enredo, que pode passar desapercebido para a maioria dos espectadores.

A história gira em torno dos dois personagens principais. Kim vive o papel de Elizabeth, uma linda garota que trabalha numa galeria de arte. Ao acaso, ela conhece um misterioso executivo chamado John (Rourke), que a envolve num jogo de sedução repleto de situações estranhas e desafiadoras.

Cada dia é uma nova brincadeira, como a antológica cena da geladeira, onde Kim serve de test-drive para todo tipo de comida (essa cena foi deliciosamente parodiada na comédia “Top Gang”, com Valeria Golino). As brincadeiras vão ficando mais pesadas, como quando John faz Liz vestir-se como homem, ou, quando a deixa parada no alto de uma roda-gigante.

Fascinada, a garota embarca nessa estranha viagem de prazeres e desafios, enquanto continua com suas funções na galeria. Uma de suas tarefas é organizar a exposição de um pintor que vive isolado no meio de um bosque. Acostumada ao torvelinho da cidade moderna, com todos os seus prazeres e exigências, Elizabeth é surpreendida com o ambiente bucólico onde vive o pintor, e a relação dele com aquele lugar.

De volta ao seu mundo, Elizabeth começa a perceber a estranheza de sua relação com John. As brincadeiras já não são tão divertidas, e a dor é maior que o prazer. É na vernissage do pintor-eremita, que ela percebe o que é ser um peixe fora d’água. Ponto. Se eu falar mais alguma coisa, ficará pouco para quem for assistir.

Quem disser que nunca fez uma brincadeira sexual, ou está mentindo, ou tem uma relação muito difícil. Independente de preferência sexual, condição social ou idade, quem ama quer agradar e ser agradado. Pode ser pelo uso de uma roupa íntima sensual, um biquíni mais cavado, uma noitada num motel, uma transa no carro ou na beira da praia.

Há os que gostam da sensação de perigo, outros que pedem para a namorada se comportar como uma garota de programa, e ainda os que associam dor ao prazer. Na minha humilde concepção, tudo é permitido entre quatro paredes – desde que os dois se sintam bem. O problema é quando a balança pende apenas para um lado.

O filme foi muito criticado por ser cheio de estereótipos. A loura bonita, o executivo cínico, o chefe gay, o entregador fanático por rock, são figuras comuns de Nova York, ou qualquer grande cidade cosmopolita do mundo. Nada disso atrapalha a história, pois o que acontece entre o par central poderia acontecer em qualquer lugar, e com qualquer casal. Não estarei mentindo, ao dizer que é uma história de amor, muito mais próxima da realidade que muitas outras.

Não gosto muito de separar os elementos de um filme, pois acredito que uma boa obra é aquela que forma um conjunto harmonioso. Mesmo assim, não tem como deixar de citar a belíssima fotografia do filme, realizada quase toda à contraluz. Os cenários são elaboradíssimos, em especial o apartamento high-tech de John. O figurino explora o branco e preto, com forte predominância do último.

A trilha sonora é um espetáculo adicional, com músicas conhecidas,  normalmente acopladas a uma determinada sequencia, como se fossem videoclipes. São músicas de Eurythmics, John Taylor, Corey Hart e outros. Alguns trechos são memoráveis: o já mencionado strip-tease de Liz, uma sensual sessão de slides, e a transa num beco, debaixo de chuva.

O diretor Adrian Lyne fez poucos filmes, mas que sempre chamaram a atenção do público: “Flashdance” (EUA, 1983), “Atração Fatal” (“Fatal Attraction”,EUA,1987), “Proposta indecente” (“Indecent Proposal”,EUA,1993), e a versão mais recente de “Lolita” (EUA,1997). Sabiamente, não quis participar das duas sequencias de “9 1/2 Semanas”. Na verdade, uma sequencia, “9 1/2 Semanas de Amor 2” (“Love in Paris”,EUA,1997), e um prólogo, “As Primeiras 9 1/2 Semanas de Amor” (“The First 9 ½ Weeks”,EUA,1998). Neste último, um jovem inexperiente vive uma série de situações que justificariam as atitudes de John, passando de vítima em um filme para o algoz do outro. Mas, ambos são muito inferiores ao filme original.

Apesar de ser um filme tecnicamente muito bem feito, “9 1/2 Semanas de Amor” não teria funcionado bem sem a perfeita química do par central. Rourke estabeleceu a imagem do homem cool, com uma barba eternamente por fazer, e o jeito cínico e indiferente. O astro vinha de sucessos como “O Selvagem da Motocicleta” (“Rumble Fish”,EUA,1983), e “O Ano do Dragão” (“Year of the Dragon”,EUA,1985), e prometia deslanchar na carreira. Contudo, ele ficou limitado a filmes menores, dando mais atenção ao boxe e às motocicletas, que eram as suas paixões.

Já com Basinger ocorreu o inverso. A atriz, que atuou com Bond Girl em “007 – Nunca Mais Outra Vez” (“Never Say Never Again”,EUA,1983), explodiu de vez com “9 1/2 Semanas de Amor”. Daí para frente, fez inúmeros filmes, destacando-se “Batman” (EUA,1989), “A Fuga” (“The Getaway”,EUA,1994), “Los Angeles, Cidade Proibida” (“L.A. Confidential”,EUA,1997), e “Africa dos Meus Sonhos” (“I Dreamed of Africa”,EUA,2000). De loura de figuração dos primeiros filmes, mostrou-se uma atriz segura e experiente, mais bonita a cada ano que passa.

Na época que foi lançado em DVD o filme teve uma edição muito pobre, com áudio estéreo, sem nenhum extra. Mais tarde, foi relançado em Blu-Ray, com o formato de tela widescreen original, e áudio em DTS-HD. É lamentável que um filme tão interessante não tenha um único documentário, trailer, notas de produção ou coisa que o valha. Os produtores ainda insistem em colocar menu e escolha de cenas como se fosse um recurso extra.

Apesar de ter sido considerado ousado na época do lançamento, “9 e 1/2 Semanas de Amor” é mais comportado que qualquer minissérie global ou novela das oito. Contudo, o mérito que o torna um filme digno de figurar na estante de qualquer cinéfilo é a interessante exposição de uma relação humana, numa ótica que sempre fica escondida entre quatro paredes. Confira você mesmo.