Filme da Semana: “Beleza Americana”

Vidas de papel

Não é nenhuma novidade uma obra de ficção que fale sobre um homem maduro apaixonado por uma garota bem mais jovem. À primeira vista, este é o tema principal de “Beleza Americana”, ganhador do Oscar de melhor filme em 1999. O tema é antigo, mas ganhou nome com o livro do escritor russo Nabokov, “Lolita”, que já rendeu um filme dirigido por Kubrick em 1962 e um outro de Adrian Lyne em 1997.

Fora isso, milhares e milhares de livros, filmes, novelas e minisséries já foram produzidos, baseados no tema que terminou virando sinônimo de ninfeta. E, o que tudo isso tem a ver com “Beleza Americana”? A lolita deste filme serve de estopim para causar uma revolução na vida de Lester Burnham, personagem principal da história, vivido brilhantemente por Kevin Spacey, que agora vive no ostracismo por conta de acusações de assé

Lester não é diferente de milhões de americanos, europeus, brasileiros ou qualquer ocidental de classe média que já tenha passado dos quarenta anos. Ele vive numa situação estável, com um emprego sem atrativos, morando numa confortável casa de subúrbio ( isso lá é morar bem), que é totalmente moldada pelas regras de sua mulher, Carolyn (Annette Benning). Esta vive as suas próprias crises profissionais como corretora de imóveis, mas mantém-se inabalável. Jane (Thora Birch), a filha adolescente, sonha com uma cirurgia plástica nos seios e nutre um profundo desprezo pelos pais.

Como nenhuma desgraça vem desacompanhada, as coisas começam a complicar para Lester no trabalho. Um jovem e arrogante consultor espalha ameaças de demissão entre os funcionários, tudo em nome da revitalização da empresa. Carolyn mantém uma relação extraconjugal com um antigo colega de universidade (Peter Gallagher), agora um empresário bem sucedido.

Em meio a esta vida confusa e decepcionante, vazia de amor, emoções e objetivos, Lester experimenta duas revelações. A primeira é quando encontra com Ricky (Wes Bentley), o filho do vizinho, trabalhando como garçom numa festa. Quando estão dividindo um cigarro de maconha (que Ricky fornece “profissionalmente”), o rapaz é repreendido pelo patrão. Ricky demite-se na hora, o que deixa Lester surpreso com a tranquilidade do rapaz. Afinal de contas, o maior medo de qualquer assalariado é a perda do emprego.

A segunda é quando assiste a uma apresentação do grupo de cheerleaders de que sua filha faz parte. A visão, da melhor amiga da filha, desperta em Lester fantasias adormecidas que o deixam atordoado. Mais tarde, ao bisbilhotar atrás da porta do quarto da filha, onde a amiga fora dormir, Lester escuta a sua jovem musa dizer que “o achava simpático, se malhasse mais, ficaria um gato”…

De uma hora para outra, Lester resolve jogar tudo para o alto. Demite-se do emprego com vantagens arrancadas no grito, começa a malhar como se fosse para as Olimpíadas, troca o carrão tradicional pelo conversível dos seus sonhos, arruma um trabalho como atendente de fastfood, tenta reatar as relações sentimentais com a família e aproxima-se dos vizinhos.

Com o simpático casal gay que mora ao lado, não há problemas, mas com o pai de Ricky, a recepção é gélida. Ex-fuzileiro, ultra conservador, o coronel Fitts odeia homossexuais e controla a vida do filho com mão-de-ferro. Embora o coronel use as mesmas táticas “sutis” de sua vida como marine, Ricky sempre dá um jeito de enganá-lo. E para que ninguém cometa o mesmo erro de milhares de tradutores “profissionais”: marine é fuzileiro naval, marinheiro é sailor e Marinha é Navy.

Este tema do chutar-o-pau-da-barraca de um homem de meia-idade já tinha sido brilhantemente explorado por Elia Kazan em “Movidos Pelo Ódio” (“The Arrangement”, 1969), com Kirk Douglas, Deborah Kerr e a então novata Faye Dunaway. Contudo, o que “Beleza Americana” coloca o dedo na ferida não é só na rebeldia tardia dos coroas. O que fica bem evidente é o lado hipócrita da sociedade ocidental, que supervaloriza a imagem, em detrimento da realidade.

Todos tem uma imagem a zelar. A esposa perfeita que cuida das rosas do jardim (o título do filme vem daí, um tipo de rosa chamada “american beauty”, do protocolo das refeições em família e da escolha do amante com a mesma dedicação. É o jovem traficante e usuário de maconha, que consegue literalmente passar-se por um menino, para burlar o exame de urina a que o pai o submete. É o rígido fuzileiro, de fazer inveja a John Wayne e Clint Eastwood, que sufoca seus desejos mais reprimidos. Até a maior gata do colégio alimenta a fama de vadia para manter uma falsa imagem.

Nessa excêntrica salada de fantoches vivos, só o casal homossexual e Lester têm coragem de expor-se como são e enfrentar o sistema de peito aberto. Pelo fato de Lester ser mais “normal”, a reação das pessoas é mais confusa e violenta do que com qualquer outro.

Além de um roteiro bem amarrado, direção segura de Sam Mendes, diálogos interessantes e fotografia bem cuidada, outro ponto forte do filme é o elenco, muito bom. Independente dos problemas que envolvem Kevin Spacey fora das telas, ninguém pode negar o seu talento, que neste filme se mostra excepcional. Já naquela época, Spacey foi acusado de pedofilia, já que teria mantido relações com Mena Suvari, que era menor de idade, mas a notícia foi desmentida por ambos. Annete Benning e Chris Cooper também estão excelentes, e a jovem Thora Birch já exibia uma longa carreira.

O filme foi muito premiado, sendo indicado para oito categorias do Oscar, e ganhando cinco: Melhor Filme, Melhor Diretor – Sam Mendes, Melhor Ator – Kevin Spacey, Melhor Roteiro – Alan Ball, e Melhor Direção de Fotografia. “Beleza Americana” obteve no total 103 premiações e 98 indicações, tanto nos Estados Unidos quanto ao redor do mundo.

As edições em DVD e Blu-Ray trazem o formato de tela widescreen anamórfico, áudio em inglês, espanhol e português Dolby Digital 5.1, legendas em português, espanhol, e inglês SDH. Como extras, vinte minutos de inúteis cenas de bastidores, trilha de comentários com o diretor Sam Mendes e do roteirista Alan Ball e apresentação do storyboard comentada pelo diretor Sam Mendes e pelo diretor de fotografia Conrad L. Hall.

Este filme é um retrato bem feito da civilização ocidental com suas mazelas e hipocrisias. Parece não existir fuga do sistema e todos temos que viver de acordo com nossos papéis nesse palco que é a vida. Contudo, se o filme ao menos servir para nos lembrar da existência desse mundo de fachadas vazias, já terá valido o preço da locação. Experimentem, coroas e gatinhas de todas as idades.

Título original: “American Beauty”