Febre da Selva

Desfile de preconceitos

É triste perceber que o mundo parece caminhar para trás, quando se pensa no relacionamento interpessoal, valores e conceitos. Nos últimos anos temos mergulhado num ambiente onde o discurso de ódio parece banalizado e até aceito por muita gente, num nível poucas vezes visto desde a Segunda Guerra Mundial. Chega a ser estranho como o filme “Febre da Selva” (“Jungle Fever”, USA, 1991), de Spike Lee, parece dolorosamente atual.

Além da problemática das drogas, “Febre da selva” fala bastante de preconceito racial. Isso nos deixa feliz por viver no Brasil, onde a mistura de raças é um valor e essa triste realidade não existe. Verdade? Bem, como diria minha avó, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. “Febre da selva” não fala só de discriminação racial, e de intolerâncias o Brasil está cheio até o gargalo. Mas, vamos por partes, como diria Jack, o Estripador.

O filme conta a história de Flipper e Angie, que vivem uma sofrida história de amor na selva urbana de Nova York. Flipper (Wesley Snipes) é um jovem e bem sucedido arquiteto negro, que mora no Harlem com a mulher e a filhinha. Do tipo certinho, Flipper segue todos os dias de casa para o trabalho, um importante escritório de arquitetura, onde percorreu com sucesso todos os postos e atribuições possíveis.

É lá que ele conhece Angie (Annabella Sciorra), uma ítalo-americana que é contratada para serviço administrativo temporário. Após um longo período trabalhando juntos, os dois apaixonam-se e vivem um tórrido romance, alheios às diferenças entre os dois.

Cientes de que viviam uma aventura, resolvem manter suas vidas como estão, ele com a família, ela com um antigo namorado. Contudo, indiscrições de ambas as partes precipitam as coisas, e os dois veem-se forçados a deixar suas casas e ir morar juntos.

Mesmo sendo adultos, livres e financeiramente independentes, os dois são submetidos a um festival de intolerâncias que vai do mau atendimento nos restaurantes à rejeição de ambas famílias, passando até por revista da polícia. A capacidade dos dois de resistir às pressões só vai até o limite do que realmente sentem pelo outro.

Este filme trata de preconceitos. Discriminação no trabalho, cultural, social, religiosa, sexual e obviamente, racial. É uma acusação mútua de racismo quando Flipper exige uma secretária afro-americana e o chefe contrata uma ítalo-americana. É o italiano moreno que reclama do americano louro e WASP. É reclamação das negras de que os próprios negros só querem as mais claras. É reclamação dos brancos de que os negros “invadiram” os esportes. É discriminação contra os mestiços, por estar “enfraquecendo” a raça. E por aí vai.

Engana-se quem pensa que o preconceito é só racial. Substitua “negro” por “pobre”, “velho”, “índio”, “gay”, “umbandista”, “nordestino”e tantas outras classificações, que o resultado será idêntico. Transportemos o casal para o Brasil, sendo Flipper um homem maduro (de qualquer raça) e Angie uma mulher bem mais jovem.

A menos que o cidadão seja um homem rico e influente, a rejeição será a mesma observada no filme. Não foram poucas as pessoas que torceram o nariz para o casal Marília Gabriela x Gianecchini ou para as louras que casam com pagodeiros e jogadores de futebol.

Um preconceito é um pré-conceito, ou seja, um julgamento de valor fundamentado em conceitos preconcebidos. Spike Lee foi muito feliz em perceber e mostrar isso através de seus personagens, não só o alienado Flipper, como a mulher recalcada por ser mestiça, o pai pastor que vê o demônio em tudo, menos em seu próprio passado, e tantos mais. Verdadeiro mesmo, só o filho viciado em crack, vivido magistralmente por Samuel L. Jackson. Numa de suas falas mais antológicas, ele diz para a mãe: “Mãe, eu fumei a maldita televisão!”.

Num filme que trata de relações entre as pessoas, a atuação do elenco é fundamental. Wesley Snipes, mais habituado aos filmes de ação, e Annabella Sciorra, que estrelaria vários filmes a partir deste, interpretam o casal central. Tem também o já citado Jackson, John Turturro como o namorado de Angie, Ossie Davis como o Bom Reverendo e, em pontas brilhantes, Anthony Quinn como o pai de Turturro. O próprio Spike Lee atua como o amigo indiscreto de Flipper, e a deslumbrante Hale Berry, que interpreta aqui um pequeno papel, ganharia o Oscar de Melhor Atriz em 2002, pelo filme “A Última Ceia”.

Apesar do filme tratar dos preconceitos, Spike Lee não o fez como denúncia e sim como constatação dos fatos. O que faz – ou deixa de fazer – a diferença é a atitude das pessoas. Como o personagem de Turturro que literalmente enfrenta os amigos para viver o que acredita, enquanto que o romeu negro desiste de enfrentar as barreiras, preferindo a acomodação. “Você só tinha curiosidade, como eu…”. Ou do fanático reverendo, que resolve combater o demônio com algo mais que pregações. Palmas para Angie, a corajosa da história e palmas para Lee, por ter levado às telas este belo poema de amor e ódio, decepção e resignação, aceitação e atitude.

Título Original: “Jungle Fever”